A democracia empírica
Artigo publicado no Jornal O Povo, Caderno Vida & Arte, página 6
Terça-feira, 30 de Setembro de 2003 – Fortaleza, Ceará, Brasil
Os transtornos causados pela estupidez responsável pelo colapso da biosfera e os efeitos da inadiável desintegração do perverso modelo econômico de exclusão humana formam a mais turva das cortinas de fumaça que perturbam o mundo contemporâneo. A natureza reage ao desequilíbrio retomando seus princípios caóticos para proteger e transformar a vida. As pessoas estrebucham mundo afora diante do apego às aparências e amargam o empobrecimento do desejo enquanto uma circunstância de guerra tenta controlar os anseios de paz.
No meio dessa confusão o Brasil tem surpreendido meio mundo. Está deixando de ser um país acovardado, agachado e metido a tirador de vantagem como bajulador dos países concentradores de riqueza. Existe uma disposição clara para o debate de contradições, uma manifestação visível de busca de convergências e uma sensação de altivez nas relações internacionais. Melhoraram significativamente os cuidados com a promoção da igualdade racial, com o estímulo à solidariedade econômica e com a gestão de conflitos legítimos através da arte da negociação política e comercial.
O momento de agora é agora. Uma nação começa a mudar quando muda o seu jeito de olhar, de se vê, de respeitar e de exigir respeito. Os países que se consideram ricos agora sabem que não gostamos nem queremos ser tratados como coitadinhos. Sabem também que para nós a nova guerra mundial é por justiça social. Estávamos engasgados com a subserviência de uma elite educada de fora para dentro desde a chegada dos jesuítas. O atrevimento da formação da cultura a partir da educação é próprio das situações coloniais. Ensinaram-nos a não compreender os determinismos teológicos, etnocêntricos, bélicos e econômicos. A educação pode até orientar os pensamentos, mas quem orienta os sentimentos profundos é a cultura.
A educação no Brasil não nos preparou para a democracia. A nossa cabeça é racionalmente antidemocrática. Temos pouca paciência para gerar consensos e para trabalhar com visão de longo prazo. Isso não combina com os múltiplos espíritos da miscigenação. Os quereres lógicos e psicológicos da cultura brasileira acabaram criando reagentes sociais e políticos que conseguiram acumular por ressumação uma sensibilidade democrática pela periferia da consciência. Os avanços desse processo empírico não têm um racional para uso em comum. Falta uma educação adequada à nossa cultura. Uma educação fundamentada na cultura e não o contrário como têm acontecido nos últimos séculos.
Os indícios democráticos brasileiros resultam de uma espécie de pedagogia dos contrastes entre a abundância e a escassez. A superação lenta e gradual dos obstáculos desse caminho coloca o País como a mais autêntica matriz da civilização mestiça que despertará o mundo para a importância da diferença. Poucas nações reúnem as condições naturais e culturais que o Brasil reúne para assumir esse tipo de estratégia anti-hegemônica nos jogos existenciais do Planeta. Saber conviver tem sido a nossa vocação. Não fossem as distorções educacionais que ainda vicejam pelas nossas casas, escolas e universidades, pensaríamos mais em ser felizes e menos em ser competitivos.
O Brasil está mudando. Precisamos ter consciência disso. Não existe fenômeno democrático gratuito. Todo passo é uma conquista da atitude de caminhar. Nesses momentos é comum a existência dos disseminadores de desconfiança. A minoria de privilegiados que não consegue ir além da sua própria ganância não entende que confiar é um talento humano. Quem desconfia de todo mundo é porque perdeu a confiança em si mesmo. E a confiança é outro traço de brasilidade indispensável para a democracia. A despeito de termos muitos motivos históricos que argumentam o contrário.
Na prática a democracia é uma ilusão. O princípio da soberania popular com distribuição eqüitativa de poder está mais para uma metáfora doutrinária. Pois é justo nesse caminho um tanto figurado que o Brasil arrisca evoluir politicamente. Não tem opção mais trabalhosa e mais lenta, mas se der certo não há outra escolha mais certeira e mais duradoura. Confiamos intuitivamente em nossa habilidade para o diálogo e na nossa convicção de ser feliz. Tenho essa sensação quando me vem à cabeça que vivenciar verdades é muito mais importante do que ser dono de qualquer delas. Se em meio às turbulências que assombram o mundo estamos correndo o risco de acreditar no impossível é porque entendemos que o julgamento da nossa crença não nos pertence.