Sociabilidade infantil
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3
Sábado, 01 de Abril de 2006 – Fortaleza, Ceará, Brasil
O problema do consumismo infantil é um tema de emergência cultural, com implicações de caráter civilizatório. Caso não seja estancado a tempo, ganhará proporções de desvalor individual e coletivo, com repercussão na vida social e na degradação do meio ambiente, que poderá comprometer definitivamente o futuro da humanidade. A geração atual herdou esse conflito da anterior e ambas bem que poderiam se unir para não deixarem tantas situações de desigualdades e horizontes turvos como legado. Se isso não for possível, que se tenha pelo menos a dignidade de influir para que seus filhos e netos estejam preparados para fazer o que não souberam ou não puderem pôr em prática: cuidar do mundo, cuidar do outro, cuidar de si.
A magnitude desse tema não se reduz às questões de gênero, classes, religiões ou partidos políticos. É, portanto, de larga amplitude mobilizadora. Ninguém, em condições normais, coloca-se contra algo que visa à melhoria das condições de sociabilidade infantil. A mais torpe das pessoas carrega dentro de si um desejo de felicidade. Essa convicção leva-me a acreditar na possibilidade de convergência de esforços para a superação das barreiras dos interesses mercadológicos imediatistas, responsáveis pela exploração comercial da inocência por meio da indução compulsiva do consumo.
A televisão tem sido o alvo mais visível das ações que procuram frear os abusos contra a credulidade infantil e produzir bases para políticas públicas capazes de colocar uma ordem no caos da incitação ao consumo. A infância é a fase da vida na qual naturalmente vemos o mundo amando e, por conseguinte, nos primeiros anos, não sabemos sequer distinguir um programa de um comercial. A necessidade de respeito a esse estágio da existência é inerente a todos os povos. E muitos países já encontraram formas de tratar desse conflito de ética e publicidade. Dinamarca, Itália, Suécia e Noruega, por exemplo, não permitem publicidade de qualquer produto ou serviço durante a programação dirigida à infância.
A atenção para que a publicidade não provoque danos morais e físicos às crianças tem amplas referências internacionais e estão servindo de fonte para pesquisadores brasileiros engajados na busca de soluções adequadas à nossa cultura. Não é uma tarefa fácil, por isso, requer participação ativa da sociedade civil. As mensagens não recomendadas à infância pululam por todas as mídias. Cenas gratuitas de sexo, de violência e de exaltação da esperteza enchem as telinhas, os outdoors e os trailers de cinema para adultos nas sessões infantis. Isso sem contar com os mais variados conjuntos de publicidade e propaganda incutidas nas revistas para crianças, nas iscas de bonecos dos fast foods e na onda de cards, contaminada de rituais macabros, do tipo Yu-Gi-Oh!, que causam embaraços psicológicos e intensos pesadelos à criançada.
Fazer valer os nossos valores essenciais para influir em nossas escolhas de vida foi um ponto tocado por Ana Lúcia Villela, pedagoga e presidenta do Instituto Alana, na abertura do 1º Fórum Internacional Criança e Consumo, com o intuito de defender que “a criança não é uma possibilidade de negócio, mas a possibilidade de um mundo melhor”. Entretanto, para enxergar essa dimensão da infância é necessário que, antes, se compreenda que, segundo as psicanalistas Ana Olmos (da Comissão de Direitos Humanos da Câmara Federal) e Gisela Sanches (do Instituto Sedes Sapientiae, de São Paulo), as pessoas se definem pelo olhar de terceiros e estão cada vez mais se conhecendo menos. Assim, na tentativa de preencher esse vazio existencial, partem para o consumismo em busca de uma felicidade inalcansável.
O professor Fernando Hernandez, que se dedica na Universidade de Barcelona ao estudo das práticas de subjetivação da infância e da adolescência, derivadas da mídia, destacou, em sua fala, a existência de uma espécie de superpedagogização do cotidiano que impede a meninada de desenvolver suas próprias hipóteses. Com agendas sempre ocupadas, permanentemente vigiadas e bombardeadas de estímulos consumistas, as crianças ficam sem condições de elaboração do seu autêntico desejo e, mesmo aparentemente saciadas com os produtos que recebem pré-mastigados, tornam-se permanentemente insatisfeitas. Essa é a moléstia de viverem expostas à publicidade abusiva, como a um jogo perverso do qual somente um dos lados conhece as regras.
O que de mais inquietante percebo na superexposição das crianças aos anúncios de brinquedos que surgem e desaparecem a cada instante nas ofertas dos comerciais é a construção do desapego. A relação efêmera que meninos e meninas passaram a ter com a maioria dos brinquedos já não estabelece a cumplicidade no campo imaginário necessária ao exercício de construção da afetividade. Isso certamente influi para o crescimento de relações descartáveis e para o estabelecimento de um profundo vazio existencial. Levando em consideração a definição feita pelo filósofo Pedrinho Guareschi, de que o ser humano é o resultado de milhões de relações, a ausência do momento de troca imaginária com o brinquedo leva a ruptura dos “nós” essenciais à formação dessa teia de sociabilidade.
Susan Linn, psicóloga estadunidense, autora do livro “Crianças do Consumo – a infância roubada” (Instituto Alana, 2006), lançado no Brasil dentro da programação do 1º Fórum Internacional Criança & Consumo, diz que os brinquedos que damos às crianças representam sugestões de como a vida deveria ser. É um alerta que nos transporta à prudência na hora de dar um brinquedo de presente. Mas como perceber que o problema existe? Como dar um freio em toda essa exploração da infância? Como tornar senso comum o entendimento de que as crianças, mesmo munidas pelo dom do distanciamento, não dispõem de raciocínio para tomar certos tipos de decisão diante da lógica do mundo adulto? Susan defende que neste aspecto precisamos ser a voz das crianças e das famílias, abordando o tema do consumo em vários níveis, mas sempre encarando o marketing do consumismo como o principal vilão.
O sociólogo e jornalista Laurindo Leal Filho, professor do Departamento de Jornalismo e Editoração da Escola de Comunicações e Artes da USP, considera o merchandising (a publicidade incutida na programação) o que há de mais grave na publicidade dirigida à infância. Principalmente nos casos de apresentadores de televisão que desenvolvem uma relação quase fraternal com as crianças, para depois trair essa confiança como vendedores da mais variada gama de produtos e serviços destinados a crianças e adolescentes. Para ele, as iniciativas tomadas pela sociedade brasileira podem ser vistas como pequenas, quando associadas ao tamanho do problema, mas também podem ser consideradas significativas, quando percebidas como desencadeadoras de um processo de reversão desse quadro cruel que, ao comprometer a sociabilidade infantil, está a bem da verdade, investindo na inviabilidade do futuro.