Metáforas da modernidade
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3
Quinta-feira, 03 de Setembro de 2009 – Fortaleza, Ceará, Brasil
As metáforas do caçador e a do jardineiro têm sido utilizadas por muitos pensadores para caracterizar as grandes transformações no comportamento da humanidade. A primeira, sempre aparece associada à pré-modernidade e, a segunda, vinculada à modernidade. Daí em diante, as características do moderno se embaralham e, mesmo discordando das terminologias em suas conceituações os estudiosos do assunto tendem a recorrer novamente à metáfora do caçador para representar os tempos atuais.
O caçador simboliza aquele indivíduo competitivo, predador nômade, incapaz de dar qualquer importância à reposição do que abate. Para ele, caso a caça se esgote, cabe-lhe apenas mudar para outro lugar. Não esboça qualquer preocupação se os demais têm o que comer. Por outro lado, a figura do jardineiro decalca aquela pessoa que, por meio da racionalidade, é vista como atenta à separação das ervas daninhas na estrutura social, de modo a privilegiar o bem-estar da sociedade com base na clara firmeza contratual.
Olhando assim, apenas para essas duas metáfora, e tendo que escolher entre uma delas, não há dúvida de que a mais adequada ao que estamos vivendo é a do caçador. Mas antes de definirmos a metáfora, caberia melhorarmos a compreensão do que realmente estamos vivendo. Na falta de uma melhor conceituação, muitos dizem que chegamos à pós-modernidade, expressão atribuída ao filósofo francês Jean-François Lyotard (1924 – 1998). Mas como, se ainda prevalece a ordem do cientificismo, do individualismo, do imediatismo e da mercantilização da vida, que marcou a modernidade?
Não houve ainda uma ruptura que alterasse a base dos fundamentos da modernidade. O máximo que se poderia dizer é que houve uma exacerbação do uso livre da razão a ponto de colocar a modernidade em situação de risco, em estágio elevado de esgotamento. A rigor, estar à beira do abismo não significa ainda descontinuidade. Na tentativa de encontrar um contorno para o que está acontecendo no mundo, alguns pensadores que recusam a expressão pós-modernidade vêm criando novos conceitos para a crise de sociabilidade.
O sociólogo polonês, Zygmunt Bauman, criou a “modernidade líquida”, como tradução do fim da perspectiva de longo prazo, do descolamento do poder dos espaços tradicionais da política para zonas sociais difusas, do fortalecimento do sistema de insegurança social, da competição aética e do individualismo inconsequente. Bauman é um dos que usam a metáfora do caçador para ilustrar o comportamento agressivo de uma sociedade impulsionada pela economia do consumismo.
As reflexões de Bauman têm sido de grande valor para o desvendar do imbróglio em que se meteram os ideais etnocentristas formuladores da modernidade como uma revisão acabadad do mundo. Ajudam a criar paralelos e a mostrar que apesar de magnífico em suas intenções, o Iluminismo foi traído pela incapacidade de ouvir o outro e de considerar os saberes deixados fora do escopo da sua brilhante racionalidade. Acho que “modernidade líquida” diz pouco da cultura do excesso, da insaciabilidade e do imediatismo.
Nem pós-modernidade, nem modernidade líquida. Prefiro qualificativos mais incisivos quanto a auxege da modernidade, a exemplo dos conceitos de “supermodernidade”, do antropólogo francês Georges Balandier, e de “hipermodernidade”, do filósofo também francês Gilles Lipovetsky, na busca de entender situações como o presentismo, o fundamentalismo tecnológico, a degradação dos limites urbanos, a visibilidade a qualquer custo e as bolhas virtuais. Esses termos se aproximam mais do que seria a figura expandida da cleptocracia, utilizada pelo biólogo estadunidense Jared Diamond para explicar as transferências da riqueza líquida da sociedade para as classes dominantes, políticas, religiosas, intelectuais, sindicais, de ajuda humanitária e econômicas.
A hipermodernidade poderia muito bem corresponder à Baixa Modernidade, da mesma maneira que se convencionou caracterizar de Baixa Idade Média o tempo em torno da crise do modelo de produção e proteção feudal, até a chegada da Renascença, como uma afirmação de mudança para a modernidade. Qual, então, o recurso metafórico que poderia representar a hipermodernidade? Para mim, a figura do lenhador é bem mais ajustada do que a do caçador.
O lenhador, assim como o caçador, é um matador de seres vivos, um destruidor da própria base de subsistência. Em termos figurativos, não estaria ligando para a desertificação, pois, em caso de esgotamento das reservas do seu entorno poderia se deslocar para outras áreas verdes. O fato de viver cortando árvores com machados e motosserras, em desmatamentos gananciosos, o projeta no mundo dos significados como um consumidor indiscriminado dos recursos naturais.
O que diferencia efetivamente esse tropo entre o caçador e o lenhador, para representar a condição humana nos tempos atuais é que enquanto o caçador destrói a fauna, mas o ambiente fica com chance de recriar seus bichos, o lenhador age sobre a flora, destruindo a base da cadeia alimentar, deixando o solo estéril, infecundo, improdutivo e impróprio para a vida como um todo.
No momento em que as mudanças climáticas se acentuam com as catástrofes resultantes do aquecimento global, da devastação do meio ambiente e da explosão demográfica, proponho a figura do lenhador como analogia mais ajustada ao comportamento comum da humanidade. O lenhador é uma figura que vem da oralidade medieval e, nas fábulas como em João e Maria, está associado ao desespero provocado pelos limites da sobrevivência, tanto que se submete ao dolo de largar os filhos na floresta para que sejam entregues à própria sorte.
A exploração florestal indiscriminada, as madeireiras sem escrúpulos, as motoniveladoras de lâminas rascantes, as carretas e as embarcações transportadoras de árvores assassinadas, os troncos valiosos que descem pelos rios do contrabando, tudo isso se encaixa na metáfora do lenhador. A ideia de que a natureza estaria à disposição do bel-prazer da natureza humana, como se fosse algo desintegrado e inesgotável, está nas raízes da modernidade e na sua fase de corte indiscriminado, que é a super ou a hipermodernidade.
Ainda levaremos várias décadas para que a desmodernidade aconteça e, ai sim, cheguemos à pós-modernidade. Teremos no mínimo mais meio século de mal-estar até que se assente a poeira da multipolaridade, da mobilidade demográfica e o nível dos oceanos aumente, iniciando a modelagem de uma nova geografia humana, que surgirá das trocas de climas, da mudança das estações e da interrupção dos nossos hábitos insustentáveis.
Quanto mais rápido resolvermos optar por estilos de vida que preservem o meio ambiente, mais próximos estaremos de um longo período de paz e da garantia de que teremos a continuidade da experiência humana. Caso escolhamos esse caminho, poderemos ter até o final do século uma vida plugada, antenada, em rede de afinidades espalhada pelo mundo, mas radicada na comunidade orgânica, perto da terra, parte da terra.
A metáfora ideal para a pós-modernidade, ou melhor, para o pós da hipermodernidade, é a do lavrador e não a volta do jardineiro. Penso assim, porque enquanto o jardineiro tem a impressão de que é o dono da beleza do jardim, o lavrador está mais afeito a respeitar à terra, a cultivar a simplicidade, a organicidade, a fazer a semeadura do que é preciso produzir para viver, a colher os frutos de uma relação integrada com a natureza e do uso da ciência e da tecnologia em favor do usufruto pleno do que a vida nos oferece.
Sinto-me confortável em reforçar duas metáforas, a do caçador e a do jardineiro, que já vêm sendo trabalhadas por pessoas que se preocupam em dar sentido à dinâmica social, e por estar propondo outras duas, a do lenhador e a do lavrador, que possam complementar o ciclo que vai da pré à pós modernidade, passando pela modernidade em si e pela hipermodernidade.
Entendo que a percepção desse conjunto de metáforas nos facilita enxergar onde estamos na trajetória da modernidade e contribui para que nos apressemos para sair do estágio degradante de lenhador. A pós-modernidade está batendo à nossa porta, para nos avisar que há um mundo a ser plantado lá fora da redoma onde estamos presos pelo auto-engano, pelo medo, pelo estresse, pelos falsos desejos e pela correria sem ter pra quê.