A idolatria da violência
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3
Quinta-feira, 14 de Abril de 2011 – Fortaleza, Ceará, Brasil
Nada reabilitará o massacre das crianças na escola de Realengo, quinta-feira passada, no Rio de Janeiro. Não há o que reabilitar. As famílias perderam suas crianças, o bairro perdeu suas crianças e as crianças perderam a vida da forma mais brutal e infundada. A melhor maneira de dignificar suas memórias é tentar fazer da tragédia um observatório e uma plataforma de atitudes voltadas para a infância no Brasil.
A presidenta Dilma Rousseff encerrou a cerimônia oficial da qual participava naquele dia para prestar condolências ao deplorável fato até então inédito na história do País que governa há apenas cem dias: “Esses brasileirinhos que foram retirados tão cedo da vida”. A fala em choque e o semblante contristado de Dilma revelaram sua compreensão do tamanho do desafio que temos pela frente para nos tornarmos realmente “um país sem miséria”.
A miséria brasileira é maior do que se imagina, porque não se restringe a indicadores como carência material, insuficiência de recursos ou taxa de analfabetismo funcional. O pior da miséria brasileira está nos distúrbios resultantes do abandono da vida simbólica a que relegamos nossa cultura. O assassino teve acesso a emprego, a escola, mas tinha carência de sentido porque, como a maioria das crianças do nosso País, era vitima do não-ser e da massificação do isolamento, como padronização comportamental.
A falta de exercício da dimensão subjetiva, que se nutre nas vivências e convivências culturais, anula a noção de singularidade e de originalidade, fazendo com que o indivíduo perca a autonomia das suas preferências para se condicionar às interinfluências do meio. Destituído da sensibilidade de apreciação e não apenas de repetição, o matador assina na execução de inocentes a sua lealdade à relação fetichista com a violência.
A chacina, em casos como esse, é uma emancipação reversa, um ato de afirmação da falência existencial. O assassino se inclui pelo potencial de atenção que pode causar. A carta que ele deixou é clara em seu delírio valorativo diante da demonização extrema do nada com nada. Ao abater energicamente aquelas crianças ele quis eliminar de vez a inocência, como quem considera imoral a força criativa da infância e sua desconformidade ante um punhado de regras sociais que estabelecem o limite do humano em si mesmo e não no semelhante.
Matar a “ingenuidade” é acabar com a possibilidade de manutenção da esperança. A criança é uma ameaça ao cultor do não-real porque ela olha à vida com credulidade. Então, não adianta repudiar a crueldade do assassino e continuar permitindo a morte lenta da infância no cotidiano do modelo social insustentável que praticamos. Se a violência ocorrida na escola de Realengo mostrou-se primitiva é porque o princípio da idolatria da violência é primitivo. Diluído no dia-a-dia e nas mais diversas formas de avatar, o sacrifício da imaginação e do lúdico vai dilacerando a infância, deixando-a sem sangue para que apodreça higienicamente diante das telas.
Para quem por atos ou omissões contribui com a matança lenta da infância, a deformação coletiva derivada da formatação de homogêneos e obedientes consumidores não passa de ficção. O que a distingue da dolorosa tragédia de Realengo é o choque da perversidade assumida pelo matador. Muitos choraram apenas pelo efeito de condolência desse impacto. Porém, juntamente com a expressão de tristeza estampada no rosto da Presidenta da República, ao lamentar o fato, certamente muitos outros brasileiros sentiram o peso da gravidade da situação.
O que está em questão é a desvalorização da vida real, como abertura de cena para a atuação das drogas, do capitalismo corrosivo e das mensagens de uma vida melhor depois da morte. Na visão do indivíduo que, sem o aconchego de uma cultura que dê beleza ao seu olhar, perde a condição de se reconhecer no mundo físico, o vazio, o nulo ganha importância transcendental. Por isso, em seu esforço adaptativo do prazer, ele mata o corpo, mata a inocência, mata o amor, mata tudo o que para ser pleno necessita de mais alguém.
O matador representa os que não suportam mais os limites da realidade e por isso querem deletá-la. Ele entrou na escola em forma de avatar e não como pessoa. Com sua identidade secreta de indivíduo digital, modelado em madrugadas e mais madrugadas de solidão à frente do computador, quis, com seu distúrbio de julgamento, provar que não existe mais outra coisa que não seja “reality show”, messianismo virtual e a verdade psíquica da idolatria da violência. O suicídio no clímax do massacre é uma demonstração do pleno gozo de um corpo que não existe de fato, apenas em imagem de jogo.
A recente campanha de lançamento do “game” intitulado “Dead Space 2”, cujo protagonista tem transtornos psíquicos mortíferos, trouxe consigo a mensagem “sua mãe odeia isso”, como convencimento aos aficionados em jogos eletrônicos de extermínio. O caderno “Folhateen”, de um jornal paulistano que assumiu editorialmente a mudança do conceito de juventude para “teenager”, apresentou na segunda-feira, 11, a seguinte dica para o estrelato virtual: “Crie um personagem. Vale ser rebelde, ultracolorido ou tosco: o importante é se destacar entre a multidão”.
Tomei esses dois exemplos apenas para mostrar como as bases para a idolatria da violência vêm sendo construídas tanto no desvalor do “marketing” da desconstrução parental quanto na mais “ingênua” das indicações de conquista de visibilidade a qualquer custo. Some-se a isso, a publicidade dirigida à criança, em induções do consumo exagerado, a baixa qualidade conceitual dos produtos e serviços destinados à infância, a banalização da arte, a ausência de espaços públicos agradáveis e apropriados para o brincar e a falta de papéis-modelo, em quem se inspirar, e teremos potenciais matadores da realidade.
Na última “Super Amostra Nacional de Animês” (Sana Fest), realizada em Fortaleza (29 e 30/jan), deu para perceber claramente a concentração de todo tipo de ícone de violência. O que antes parecia simplesmente uma feira de divulgação e venda de produtos da indústria de cultura de massa japonesa para exportação, agora tem garota com suástica tatuada no braço, patrocínio de empresa de segurança (em um evento para a juventude é no mínimo estranho) e camisetas com mensagens do tipo: “Seja um matador, seja uma celebridade” e “Gostei de você, vou matá-lo por último”.
Houve um tempo em que os psicopatas tinham o fetiche de matar figuras públicas. Foi assim que Martin Luther King e John Lennon foram assassinados. Nos últimos tempos, esse tipo de fantasia mórbida está se voltando para filhos que matam os pais que não querem emprestar o carro ou para antecipar a herança, e para casos de massacres em “shoppings”, estações, cinemas e escolas. São crimes típicos da privação de intimidade com os símbolos sociais edificantes que só a cultura, como ambiente de livre exercício desejante, pode proporcionar.
Por ser capaz de inspirar propósito ao que aparentemente pode até não ter causa final, a criança torna-se alvo vulgar desse tipo de imolação. Como não há como pensar em adulto sadio com o desaparecimento da infância, resta-nos deixar a complacência de lado e dar um sentido ao luto pelas crianças de Realengo. O atirador não está sozinho. No dia do massacre alguém criou um falso perfil do assassino no Orkut e rapidamente a página teve mais de mil e quinhentos seguidores, até que também muito rapidamente foi excluída. Pelo jeito, não estamos muito bem de ídolos.