A consciência ecoplanetária
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3
Quinta-feira, 26 de Maio de 2011 – Fortaleza, Ceará, Brasil
Participei com muita satisfação das comemorações do centenário de ação educativa do Colégio Santa Cecília no Ceará, realizadas no sábado passado na própria escola, em Fortaleza. As coordenadoras do evento me presentearam com o desafio de falar sobre o tema “O planeta precisa de gentilezas” para pais, mães, educadoras e educadores. Organizei o meu pensamento em três movimentos voltados ao referencial de gentileza, na sua concepção formadora de uma consciência ecoplanetária.
No primeiro movimento tratei de compartilhar uma reflexão sobre quais seriam os grandes atos virtuosos que, impulsionados pelo fenômeno criativo da intuição e da razão, tornaram-se capazes de traduzir em prática social o que a sensibilidade humana tem de melhor em sua disposição de fazer o bem. Mergulhei nas nebulosas do tempo e garimpei sete desses atos: cooperação, tolerância, generosidade, idealidade, moralidade, alteridade e gentileza.
Comecei pela Cooperação porque a atitude da colaborar mutuamente em uma mesma ação foi um dos primeiros passos evolutivos da nossa humanidade. A insuficiência da capacidade de competir individualmente para garantir a sobrevivência levou os primeiros seres humanos a flexibilizar seus instintos primitivos para reconhecerem-se semelhantes e poderem, assim, contar uns com a companhia dos outros nos embates pela perpetuação da espécie.
Depois de notar a existência e a importância do próximo, nossos ancestrais tiveram que inventar a Tolerância. Os esforços para suportar a diferença em favor da sociabilidade e da convivência provocaram a invenção do consentimento. Esse foi um enorme exercício de paciência e de humildade, pois, tolerar tem como premissa a postura de aguentar a presença convizinha e o relacionamento com alguém que tem as suas próprias necessidades, desejos e vontades.
O interesse pelo outro e o respeito por si mesmo fez nascer o espírito solidário, voltado para ações que considerassem a fraqueza do semelhante. Mista de exercício da dignidade e do amor, enquanto impulso ao querer bem e ao desejar o bem, a Generosidade passou a ser fundamental na correção das desigualdades, embora ao longo do tempo tenha sido confundida com a exibição da superioridade de quem dá sobre quem recebe. Não é à toa que existem tantas pessoas, físicas e jurídicas, construindo “boa imagem” sobre a miséria dos outros.
A descoberta da Idealidade decorreu do avanço da consciência individual para o coletivo, descortinando no ser humano o anseio de compartilhar aspirações comuns. Os ideais dos sonhos de paz, de bem-estar e de busca por um estado pleno de contentamento, que chamamos de felicidade, exigiram a intensificação da cumplicidade e o desenvolvimento do ato virtuoso da Moralidade, como condição para assegurar a liberdade. Nem sempre isso é possível porque a moral oscila de acordo com as circunstâncias, os interesses e o jogo de forças entre as correntes religiosas, filosóficas, artísticas, científicas, políticas e comerciais.
A Alteridade é uma qualidade muito difícil de ser transformada em ato. O agir considerando recíproca a visão do diferente só ocorre quando alcançamos um elevado nível de empatia, altruísmo e consciência relacional. A compreensão do que é outro e não apenas da existência do outro em si, requer aceitação do próximo pelo que ele é em seu jeito de pensar, ser e viver. Na formação da consciência ecoplanetária, a alteridade aplica-se na relação da cultura com as mensagens da natureza.
Apesar de não ser nova, a ação de ser gentil perpassa todos esses atos virtuosos em maior ou menor grau. À medida que a humanidade se desembrutece, as pessoas tornam-se mais gentis, mais amáveis, afetuosas, carinhosas e mais refinadas no modo de se tratarem. Ser gentil é ser a presença que estabiliza o outro. A gentileza se faz por realização interior (arte e espiritualidade), por comunhão externa (amizade e fraternidade) e pelo aperfeiçoamento da reaproximação do ser humano com a comunidade de vida na Terra.
No segundo movimento orientado à gentileza na perspectiva da sustentabilidade fiz uma rápida visita às metáforas que têm sido utilizadas para caracterizar as grandes transformações no comportamento da humanidade: o Caçador e o Jardineiro. Acrescentei ao debate duas metáforas criadas por mim (o Lenhador e o Lavrador), na busca de completar o ciclo que vai da pré à pós modernidade, em uma mesma inspiração de consciência ecoplanetária. Tema sobre o qual eu havia discorrido em minha coluna de 03/09/2009, neste Diário.
Retomei no debate do Colégio Santa Cecília alguns qualificativos acrescentados ao conceito de modernidade, a exemplo dos termos “supermodernidade” e “hipermodernidade” utilizados pelo antropólogo George Balandier e pelo filósofo Giles Lipovetsky, ambos franceses, e a “modernidade líquida”, do sociólogo polonês Zygmunt Bauman. Ainda que eu prefira estas visões do caráter hiperbólico da modernidade, não deixei de destacar também a definição de “pós-modernidade”, do filósofo francês Jean-François Lyotard, que associa o fim da modernidade ao fim das metanarrativas que davam suporte a sistemas, doutrinas e movimentos ideológicos.
A modernidade não acabou. O que parece um fim não passa de uma fase de transição forçada pela exaustão do comunismo, do fascismo, do capitalismo, do liberalismo e do nazismo. O chauvinismo europeu em reação às novas movimentações migratórias, o fundamentalismo tecnológico e a ideologia do consumismo não parecem em nada com o que poderá ser a pós-modernidade. Talvez a nova modelagem geopolítica mundial em franco redesenho aponte para o que o cientista político estadunidense Samuel Huntington classificou de “choque de civilizações”. Ou seja, conflito de valores, instituições, religiões, histórias, línguas, tradição, enfim, embates de culturas.
No terceiro movimento, dos três com os quais procurei abordar o tema “O planeta precisa de gentilezas”, realço o que, na minha observação, são os maiores e mais complexos desafios da gentileza em um mundo marcado pelo egoísmo social: a) agir sobre as causas do esgotamento dos recursos naturais do planeta; b) instituir o parâmetro da coexistência, e c) descobrir os encantos do cotidiano.
Para quem, como eu, ainda acredita que seja possível reverter o desembestar da humanidade rumo ao próprio fim, a alternativa é procurar fazer valer os nossos atos virtuosos e honrar a dádiva de termos sido criados à imagem e semelhança de Deus, o que nos impõe a obrigação de divinizar a vida. Logo, temos que nos desvencilhar dos tabus e ter coragem de enfrentar questões óbvias como a explosão demográfica, a desconstrução da infância, a ingratidão para com os que construíram o que somos, o tsunami digital que prega o escancarar da intimidade como um valor social e a controversa ideia de crescimento econômico, como sinônimo de promessa de riqueza, de renda e de bem-estar.
Em cada gesto do nosso cotidiano podemos cuidar do planeta como um ser sensível do qual a humanidade faz parte. Se desejarmos escapar da metáfora do Lenhador, que avança na destruição do nosso hábitat comum, para chegarmos à metáfora do Lavrador, aquele que se sente parte da terra, que deixa a terra descansar e a cultiva com organicidade, temos que reaproximar cultura e natureza, urbano e rural, explorando a nossa vastidão interior para chegar a um estado de plenitude que faça da existência algo grandioso. Nessa jornada, privilegiar a gentileza é a trilha mais curta que nos levará a privilegiar a vida no planeta.