Infância livre de publicidade
Artigo publicado no Jornal O POVO, Caderno Vida & Arte, pág.4
Quarta-feira, 09 de abril de 2014 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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FAC-SÍMILE

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Há oito anos, quando fui convidado a colaborar com o projeto Criança e Consumo, que estava sendo criado pelo Instituto Alana, a primeira ideia que me veio à cabeça foi a de que a sociedade brasileira não deveria medir esforços na produção de convergências que fossem capazes de enfrentar os interesses dos responsáveis pela exploração comercial da inocência por meio da indução compulsiva ao consumo.

Um dos maiores problemas identificados naquele momento era a forma desregrada e, por vezes, inconsequente, com que muitas das empresas de produtos e serviços destinados ao consumo infantil usavam as mais variadas técnicas de publicidade para seduzir crianças no Brasil, causando toda sorte de problemas de estresse familiar e escolar. Por outro lado, era alentador saber que, se em vários outros países essa prática de sedução comercial não era permitida, nem tudo estava perdido.

De 2006 a 2014, foram muitos debates, embates, articulações e vontade de “fazer valer nossos valores essenciais para influir em nossas escolhas de vida”, de modo que a infância não se resuma a uma “possibilidade de negócio, mas a possibilidade de um mundo melhor”, como procurei sintetizar da fala de Ana Lúcia Villela, fundadora e presidente do Alana, em um artigo intitulado Sociabilidade Infantil (DN, 01/04/2006). Nesse período, o Instituto, com apoio do Ministério Público, obteve muitas conquistas para deter excessos do mercado na relação com a infância, em ações envolvendo retiradas de comerciais do ar e multas inibidoras.

Os avanços por uma infância livre de publicidade tiveram, entretanto, na sexta-feira passada (4), um dia histórico, quando foi publicada no Diário Oficial da União a norma que proíbe a publicidade dirigida à criança em todo território nacional. A Resolução nº 163 (13/03/2014) do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda) – órgão do qual o Alana faz parte, como uma das entidades da sociedade civil, ao lado de ministérios do governo federal – já está, portanto, em vigor, tipificando como abusiva essa prática de comunicação mercadológica em eventos, espaços públicos, páginas de internet, canais de televisão, creches, escolas (inclusive uniformes e materiais didáticos), pontos de venda e nas embalagens de produtos.

É provável que haja questionamento da resolução do Conanda junto ao Poder Judiciário, por parte de agentes do mercado que exploram a credulidade infantil, mas os direitos de cidadania da criança estão cada vez mais evidentes, e uma forma de demonstrarmos respeito a eles é colocarmo-nos na posição da criança, como defendeu e fez o escritor, médico e educador polonês Janusz Korczak (1878 – 1942), autor do ensaio “O direito da criança ao respeito”, no qual traça uma perspectiva das considerações que viriam a ser dadas à pessoa criança, como um tipo particular de sujeito de direito.

Não deixar que a publicidade aborde diretamente a criança é um passo para uma nova infância, com liberdade para filhos e alívio para pais e educadores. Na nova arquitetura sociopolítica que se pretende para o mundo pós hipermoderno, não cabe mais a violência do vínculo forçado ao consumo pelo assédio perturbador das empresas, em comunicações de mercado que tornam a criança refém da publicidade e os pais reféns das crianças. A norma do Conanda dá um basta nessa anomalia social, libertando meninas e meninos dessas técnicas de domesticação do desejo a fim de que possam usufruir de suas reservas de espontaneidade.

O nivelamento entre crianças e adultos na publicidade tem sido um dos responsáveis pela supressão do tempo da infância. Não é mais aceitável essa perda generalizada de espaços imaginativos, por conta do estímulo ao consumismo. As corporações que se valem do argumento de que, como cidadãs, as crianças também precisam ter acesso direto às informações de produtos e serviços postos à venda e que seriam do seu interesse, não se dão conta, ou agem de má-fé, por desdenharem da representação da infância em sua igualdade diferenciada.

No plano do Direito, a justiça se dá na distinção existente entre os iguais, na igualdade da diferença. A importância de a sociedade cuidar para que a publicidade de produtos e serviços infantis seja dirigida aos pais e adultos cuidadores, e não ao público infantil, está no reconhecimento de que a criança é um outro – com necessidades e capacidade de participação próprias –, apesar de semelhante. Uma infância livre de publicidade está mais próxima da emancipação do si.

Na história da infância, entre episódios de incompreensão, repressão, exclusão e avanços conceituais e práticos, pode-se dizer que a norma do Conanda para que as empresas deixem as crianças em paz é um marco a ser comemorado pela sensatez da dinâmica democrática. Essa conquista leva em consideração uma infância do presente, e não aquela do vir a ser, pregada pela ideologia geracional. Com ela, a criança conta com uma força legal capaz de protegê-la dessa sanha gananciosa que a tudo transforma em mercadoria e a todos em estatísticas de consumo.