Deixei que as lembranças fossem trazendo pelos meus ouvidos mentais as imagens das canções que elas guardam em mim. Entregue ao silêncio do quarto, senti cada composição que chegava como fenômeno da minha aceitação. Melodias e versos foram se alternando na evocação de temas, situações, ambientes e pessoas, dando sentido ao vínculo.
Chegaram canções que, ao longo dos anos e de maneira especial, ilustram meus dias, inspiram meu coração e conversam com meus pensamentos; músicas que permanecem e que seguem flutuando por prazer espontâneo no mergulho sutil das minhas recorrências e confluências emotivas e de sentimentos, na relação com os outros e comigo mesmo.
São obras que estão integradas às minhas relações sociais, culturais, políticas, espirituais e amorosas, sob inspirações de lendas, impulsos existenciais, metáforas da realidade, passagens pelo campo da infância e outras aventuras do viver e suas tensões e distensões, densidade e superficialidade, dureza e suavidade da condição humana.
Unindo a força do som com a potência da palavra, deleitei-me com os motivos que me levaram a incorporar tais composições ao estilo do meu viver. O repertório baixado em minhas recordações não tem o caráter de lista de melhores, maiores ou mais importantes; seu grande valor está na cadência, no ritmo e nas sensibilidades que agregam à minha experiência estética e ao meu compromisso com a existência.
Meus clássicos são aquelas canções que soam sempre frescas em mim, com brilho, cheiro e sabor, respeitando a subjetividade dessa linguagem artística que mais se aproxima de Deus. Sim, música é oração, energia que convida ao passeio imaginativo das referências auditivas com o instante, no agitar das horas pelas estações do tempo, das reminiscências, da memória e da nossa história.
O que nos une a certas canções é o sentido transcendente dessa vinculação, que se traduz em espantos e encantos da aventura de viver em tons maiores e menores; tempos sustenidos e bemóis, o prazer e a dor, a alegria e a tristeza.
As criações musicais me enchem de ânimo porque sussurram, gritam, acalantam e, quando necessário, não me deixam dormir, possibilitando que, de prontidão, eu consiga ver o que se passa nas noites ou contemple o nascer de novos dias.
Agradeço sempre a todos os autores, todas as autoras, intérpretes e músicos acompanhantes que, com suas criações, cantos e instrumentos gravaram as músicas que mais me emocionam, que me fazem chorar, cantar, pensar e amar, abrindo novas percepções sobre quem sou, quando venho de dentro de mim nos braços das canções.
A ambiência sonora que está presente no meu viver contribui para que eu não me perca da realidade, não me afaste do apreço pelo ser humano e nem deixe de cuidar das necessidades da alma. Toda música que me atrai, facilita em meu cotidiano o exercício da estética dos sons e das palavras, suas combinações, intensidades e beleza. A presença constante desses valores-signos no que faço areja minha forma de ser e de estar no mundo.
Entre centenas, talvez até milhares de canções que já ouvi, e que de algum modo me influenciaram foi bom estar frente a frente com aquelas que espontaneamente passaram pelo filtro da minha rememoração e me inspiraram a fazer essa reflexão, publicada integralmente no meu livro “Código Aberto – Autobiografia Colaborativa” (pp. 319 a 325, Cortez Editora).
Fonte: RiVista do Mino nº 248