Visões do MinC em três tempos
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3
Quinta-feira, 19 de Maio de 2011 – Fortaleza, Ceará, Brasil
As diversas polêmicas envolvendo a cantora e atriz Ana de Hollanda no comando do Ministério da Cultura (MinC) nos convoca a pensar sobre o que está mesmo acontecendo para motivar o que o ministro Gilberto Carvalho (Secretário-geral da Presidência da República) chamou de “orquestração sórdida”. Para tentar compreender tudo isso, revisitei os efeitos das filosofias das políticas culturais brasileiras nos governos Fernando Henrique (1995 – 2002) e Lula (2003 – 2010) e os primeiros movimentos do MinC no governo Dilma Rousseff.
A degradação da nossa ecologia cultural no governo tucano deu-se a partir da doutrina neoliberal do estado mínimo, o que fez com que os destinos da cultura fossem entregues aos interesses do mercado. A máxima da inevitabilidade da globalização econômica e o alinhamento incondicional com as políticas de planificação do mundo, lideradas pelos Estados Unidos, violou os conceitos de valor artístico e social da arte, restringido-a a uma exagerada mercantilização.
O lema do “presidente esclarecido” era levar o País ao “primeiro mundo”. Em nome dessa aspiração a cultura foi vinculada, por força de lei, ao gosto publicitário e acabou resumida a produto de consumo de massa. Deu praga na nossa variedade de espécies artístico-culturais. O que valia era a relação custo-benefício, com a estética da grana deitando e rolando em nossos bens simbólicos, em total abandono de qualquer coisa que não significasse lucro.
O Ministério da Cultura de Francisco Weffort ficou a ver o desfile do império das louras do “tchan”, do pagode higiênico (negros de paletó e cabeça raspada para esconder o pixaim), da proliferação do rap e do funk como recursos de protesto das periferias, da literatura esotérica e de auto-ajuda, da síndrome das celebridades de “Caras”, do polishop da fé tele-evangelizada, da ciência de resultados, dos programas de baixaria áudio-visual e outros shows de horrores consumidos como diversão e lazer.
Na era FHC, a nossa diversidade inventiva passou a ser vista apenas como insumo de produção em grande escala. O ideário abraçado pelo tucanato nos levou a um período de anticultura, de atração pelo que não somos, de desfiguração das essências pela sedução das novas embalagens. A representação da cultura nacional chegou a ser feita oficialmente por um hino breganejo nas comemorações do quinto centenário. Para completar, no apagar das luzes, o mercado brasileiro de livros foi praticamente entregue às editoras transnacionais de “best sellers”.
Embora o crescimento da internet no Brasil tenha ocorrido logo no início do governo FHC, o mercado digital tomou gosto comercial pela cultura brasileira na era Lula. Os tempos de Juca Ferreira à frente do MinC – primeiro como secretário-executivo de Gilberto Gil e depois como ministro efetivo – coincidiram com a instalação no País de grandes empresas do mercado mundial de conteúdos, que ocuparam estrategicamente o “share of mind” (participação da marca na percepção do consumidor) dos usuários brasileiros, com propaganda lastreada nos princípios democráticos da rede mundial de computadores e na praticidade de comunicação da telefonia digital.
Nesse cenário, o MinC desenvolveu um trabalho extraordinário de ativismo reflorestador da cultura brasileira, investindo forte na militância cultural em uma grande semeadura que contemplou manifestações artísticas e culturais dos povos indígenas e dos imigrantes africanos, europeus, árabes, asiáticos e dos vizinhos americanos, que contribuíram para a nossa sedimentação multiétnica. A cultura popular refloresceu no governo Lula, entre as ervas daninhas das ofertas anunciadas pela nova ordem de consumo e os transgênicos disseminados pelas corporações que dominam os canais das quatro telas (televisão, computador, cinema e celular) por onde escoam as induções dos hábitos massificados de consumo.
O MinC lançou mão do ferramental tecnológico disponível para fazer uma revolução, onde Pontos de Cultura reintegram a arte ao cotidiano das comunidades e teias culturais se articulam, dando unidade à nossa diversidade. Essas e outras ações estimularam novos modos de produção, em muitos dos quais o processo autoral toma as feições de criação coletiva e os coletivos assumem o fazer cultural construindo outras vias comerciais, independentes do tradicional mercado de bens e produtos. Uma maravilha que, infelizmente, não conseguiu combinar reflorescimento com estratégia sustentável de País.
As grandes corporações do mercado de conteúdos perceberam a existência dessa vulnerabilidade e viram nela uma oportunidade para conseguir insumos culturais gratuitos, como redução de custos dos seus negócios bilionários. Colocaram lobistas e patrocinaram consultores para contaminar os órgãos oficiais de cultura com a lógica da economia do mercado digital. O resultado desse descuido oficial foi o surgimento de uma cumplicidade aloprada, consciente ou não, entre os responsáveis pelos interesses do mercado e os novos produtores de bens e serviços culturais, brotados a partir do fomento feito pelo MinC, o que resultou em uma estranha versão atualizada do neoliberalismo tucano.
A situação começava a ficar crítica, quando elegemos a presidenta Dilma Rousseff e ela convidou Ana de Hollanda para ser ministra da Cultura. O tempo de gestão da nova ministra ainda é muito curto para fazermos qualquer juízo da sua filosofia de gestão, mas pelas primeiras medidas que ela tem tomado à frente do MinC nota-se que aponta para uma consciência da preservação da biodiversidade cultural, com atenção especial à valorização das madeiras de lei, que são os refinadores de arte. Nessa perspectiva, a ministra Ana dará continuidade à parte louvável do trabalho de Juca Ferreira, mas ajustando o setor ao nível que ele precisa alcançar para contribuir efetivamente com o desenvolvimento político, social e econômico do País dentro da nova conformação geopolítica mundial.
A ministra tem tomado medidas acertadas, como a retirada do portal do MinC do selo “Creative Commons”, que simboliza o novo padrão de “copyright” do mercado de conteúdos, e a revisão da legislação de incentivo à cultura e de direitos autorais, comprometidas em suas essências pela ambiguidade das circunstâncias em que foram formuladas. Ambas precisam encontrar pontos de flexibilidade que as ponham em linha com os interesses mais legítimos da sociedade. Nesse aspecto, espera-se que a ministra pressione também o Ecad (Escritório de Arrecadação e Distribuição de Direitos Autorais), por mais transparência na distribuição do quase meio bilhão arrecadado anualmente com execução pública de música.
Em apenas cinco meses de gestão, Ana de Hollanda tenta cumprir os contratos da administração anterior e dinamizar o ministério com uma cota orçamentária um pouco maior do que a arrecadação do Ecad. Mesmo assim, ela já criou uma Diretoria de Educação, para desenvolver, juntamente com o MEC, programas dirigidos a professores e estudantes, no momento que o Plano Nacional de Educação prevê que pelo menos metade dos nossos cinquenta milhões de jovens frequentarão a escola em tempo integral. O MinC está trabalhando nos projetos culturais do Brasil para a Copa de 2014 e Jogos Olímpicos de 2016, sem contar com o mapeamento que está sendo feito para fundamentar as políticas de Estado para a cultura, em consonância com o seu potencial econômico, político e de cidadania.