A república feminina
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3
Quintas-feiras, 7 e 14 de Julho de 2011 – Fortaleza, Ceará, Brasil
Parte I, publicada em 7 de Julho de 2011
O Brasil está há seis meses sob o comando de uma mulher. Uma mulher que colocou outras mulheres na liderança dos principais programas do governo e na sua coordenação política. As ministras Miriam Belchior (Planejamento), Gleisi Hoffman (Casa Civil) e Ideli Salvati (Relações Institucionais) têm currículo sólido, competência testada e um indiscutível compromisso com o País. Olho para elas e não vejo o poder mudando o corpo, vejo a nação mostrando a alma.
Por outro lado, escuto um renitente discurso masculino ancorado na negação e um tanto ansioso para frear a efetiva confirmação da representação feminina na política. É até compreensível que, oscilando entre a comédia e o drama, haja uma relutância diante do fantasma de uma inconsciente desforra histórica. A insistência no transplante de um determinado padrão de domínio para o âmbito da diferença de gênero é uma simplificação desastrosa.
Os esforços de desqualificação se acumulam nas dúvidas sobre a capacidade da presidenta Dilma Rousseff e das suas ministras de governar, de resolver problemas e de intervir em situações complexas. Apedrejam, cobram atitudes caricatas e, inspiradas pela maneira como as mulheres são socialmente vistas, fazem apostas de que o Brasil pode perder o prumo no instável e movediço terreno da nova ordem multipolar.
Essa busca inútil de uma razão para justificar a inclinação brasileira rumo a uma república feminina tem ofuscado muita gente enquanto, por via de regra, a cidadania brasileira cambaleia diante de deslavados escândalos de corrupção, da crise de partidos sem bandeiras, de sindicatos recaídos ao peleguismo, de parlamentos omissos e de um judiciário sedento de fazer o papel de legislador.
Toda vez que penso no cenário mundial de desemprego e que no Brasil esse problema ocorre por falta de qualificação, me vem à cabeça a ideia de falência da nossa elite econômica, mas toda vez que penso também que a questão da escassez da produção no campo não é mais de distribuição – pois atualmente existem recursos para compras locais – lamento o estado de debilidade a que chegou a elite dos movimentos rurais.
A impressão que tenho é que esses e outros inúmeros gargalos da vida social, política e econômica brasileira há muito vêm pedindo uma guinada quanto ao jeito de serem tratados. Nesse sentido, o processo de ascensão feminina ao poder traz consigo uma sabedoria ainda pouco experimentada em dimensões robustas de gestão, que pode levar a soluções diferenciadas, conforme ganhe espaço no enredo da nossa sociedade.
A história do Brasil praticamente só mostra traços da mulher como um personagem não declarado. E é exatamente nessa vivência de clandestinidade que acredito se encontrar guardado o segredo da compreensão e do agir intuitivo e racional, acumulados século após século na mente e no sentimento feminino.
Ao ser criada na fazenda a mulher nativa perdia a liberdade da convivência com a sua tribo, mas na vida doméstica ganhava o acesso ao que pensavam os donos da casa. O homem índio, não, este era submetido a ser escravo-vaqueiro e não conseguia facilmente entender o que se passava na cabeça dos seus algozes.
Aluhy, a irmã do lendário Mandu Ladino, guerreiro tapuia do final do século XVII, cuja história foi romanceada pelo psiquiatra e escritor piauiense Anfrísio Neto (Halley, Teresina, 2006), ainda era menina quando foi capturada. Mesmo tendo crescido e se tornado mãe entre fazendeiros era vista por eles com rompantes de desconfiança: “Não podia se iludir, se levar por aparência e esquecer que aquela índia, apesar de criada por eles tão dócil e delicada, na verdade, continuava sendo uma bugra e, nesta raça de gente, todos sabiam, não se podia confiar” (p. 245).
A mulher negra obrigada a trabalhar nas residências dos donos de usinas, dos cafezais e das minas de ouro, também teve a oportunidade de ouvir o que diziam no interior da Casa Grande, condição que lhe deu uma sensível diferença perceptiva com relação ao escravo homem – açoitado nos canaviais e nos campos de café – quanto ao entendimento do que pensavam senhores e sinhazinhas. Além de estar nos lugares das conversas mais íntimas, a escrava saia para as ruas, vendendo frutas e artesanato, como é comum nas telas de Jean Baptiste Debret.
Mesmo a mulher branca, limitada em sua liberdade de deixar fluir o feminino nos aspectos que pudessem entrar em conflito com o masculino, reuniu conhecimentos que raramente teve a oportunidade de por em prática. No Brasil, mulheres brancas como a zoóloga Bertha Lutz, que liderou o movimento de conquista do voto feminino, na década de 1930, demonstraram claramente o potencial aglutinador e a força política da mulher.
Há pouco mais de uma década, conversando com a cantora maranhense Anna Torres sobre o feminino, resolvemos fazer uma música intitulada “Degrau por degrau” (gravação de Cecília Colares, no CD Jogo Rápido, 2002), com letra dizendo assim: “Você passa da conta / e não se dá conta que o mundo mudou / Eu vou à luta degrau por degrau / cantando Olympe de Gouges”. Estávamos ali falando do presente, mas a partir de um longínquo processo histórico pouco elucidado. Na segunda metade do século XVIII, Olympe de Gouges enfrentou a autoridade masculina presente na Revolução Francesa, escrevendo uma “Declaração dos direitos da mulher e da cidadã” e foi guilhotinada por isso.
Se puxarmos bem pela memória veremos que a mulher está mais bem preparada do que o homem para assumir o salto da curva da evolução para um novo ciclo da humanidade. O passado está no presente, não ficou para trás, e a “ciência” do feminino pode ser uma alternativa para a sustentabilidade. Com Dilma, Gleisi, Miriam, Ideli e outras ministras, a sociedade brasileira se permite experimentar efetivamente a autoridade do discurso feminino. A fala silenciada por séculos e séculos de modelo masculino abre um canal de comunicação que pode ser o início da construção de novos referenciais.
Não se trata de um revolucionarismo de gênero, mas da oportunidade do exercício de uma nova e urgente essencialidade, posta em cena por aquele ser que não falava, mas ouvia. A filósofa paraibana Simone Marinho resume os esforços de reflexão da mulher, diante das mais diversas circunstâncias, como manifestações destituídas de um senso de movimento feminino ou feminista, consciente e explícito. Numa entrevista concedida a Carolina Desoti, para a revista Filosofia, ela diz que o ponto comum entre a “amante”, a “beata” e a “herege” é a consciência pela luta dignidade humana, independentemente de gênero” (Escala, jun2011, SP, p.9).
No entendimento da professora paraibana o posicionamento da mulher “pós-revolução sexual” não deve ser o de “superar o homem”, muito menos se for movida por algum tipo de “rancor histórico”. Simone Marinho acha a disputa de gênero algo muito pequeno para quem aprendeu a se colocar, não só como mulher, mas como ser humano, que superou tantas adversidades e ainda tem tantos desafios a enfrentar (idem). Ao ler essa opinião, enquanto reflito sobre esse momento do Brasil, com a presidenta e o primeiro escalão da república sob o poder das mulheres, deduzo que a diferença no fazer feminino está na autonomia do seu pensamento ao longo da história.
Parte II, publicada em 14 de Julho de 2011
Diante do esgotamento dos recursos naturais do planeta e da crise de significados a que a humanidade se entregou, só consigo enxergar três opções de destino: (a) seguirmos com a supremacia do pensamento masculino até desaparecermos enquanto experiência humana; (b) esperarmos que as catástrofes naturais promovam uma apavorante redução demográfica, levando-nos a tomar consciência e a agir pelo medo extremo; e (c) alternarmos a matriz predominante do poder para o feminino.
A minha opção é a terceira. O padrão masculino exauriu-se em si mesmo. No livro “As 100 maiores personalidades da história” (Difel, 2001, Rio de Janeiro), o pesquisador estadunidense Michael H. Hart classifica e resenha líderes religiosos, políticos, inventores, escritores, filósofos, exploradores, artistas e inovadores do mundo, que conduziram a vida de milhões de seres humanos e que influenciaram a ascensão e a queda de civilizações. Mas em uma centena de nomes, apenas dois são de mulheres: Isabel I, em 65º lugar, e Elizabeth I em 94ª posição. O que revela uma realidade de determinação masculina.
Nesse emaranhado histórico não podemos esquecer de que homem ou mulher, todos somos seres humanos, com nossas qualidades e defeitos masculinos e femininos. A pesquisadora colombiana Susana Castellanos de Zubiría, em seu livro “Mujeres perversas de la historia” (Norma, 2008, Bogotá) biografa personalidades cujas memórias contradizem a tradicional ideia que relaciona a mulher com a bondade, a ternura, a vida e o amor maternal. Ela mostra, entretanto, que o ícone da mulher malvada está associado a personalidades que inspiraram esse imaginário, mas que boa parte dessa percepção não passa de fantasmas masculinos.
Com ambição política e paixão religiosa, em 25 anos no poder a rainha Isabel I estabeleceu a Inquisição espanhola – condenando milhares de pessoas à fogueira –, expulsou judeus e muçulmanos da Espanha, financiou Cristóvão Colombo e iniciou a destruição dos povos nativos do continente americano. A importância das suas decisões foram relativizadas por Michael Hart porque ela reinou em dobradinha com o marido Fernando de Aragão (p. 372). Já Elizabeth I foi considerada a mais notável das rainhas inglesas, em um reinado de 45 anos, marcado pela prosperidade da pirataria econômica e pela conquista da posição de maior potencia naval do mundo (p. 518).
Exemplos como esses revelam que não deve haver tanta diferença de gênero quando o assunto é mentalidade ardilosa e abuso de poder. Nos relatos que faz de mulheres lendárias, bíblicas, governantes e cortesãs, Susana expõe imagens de ambições, ressentimentos, vinganças e brutalidades por trás de lágrimas, sorrisos e perfumes. Para cada Nero, Calígula, Átila e Hitler há sempre um paralelo de Teodora, Lucrecia, María Tudor e Ilse Koch. Além disso, há as mulheres que, quando governantes, fazem questão de manter a simbologia do masculino, como foi o caso de Santa Irene, conhecida também por ter furado os olhos do filho, herdeiro natural do trono de Constantinopla (797 d.C), e, ao assumir o poder absoluto se fazer canonizar como “a piedosa”.
Susane Castellanos ressalta que ao confrontarem os padrões masculinos as mulheres “tendem a ser julgadas mais ferozmente porque a despeito das crueldades que tenham cometido são acusadas de transgredir os limites do seu gênero” (p. 356). Pois é exatamente nesse ponto de transgressão dos limites da capacidade da mulher de governar que se atualiza o discurso masculino que tenta desqualificar o exercício da autoridade pública feminina, liderado pela presidenta Dilma Rousseff no Brasil. O que antes, desde Eva, vinculava o feminino ao mal, passa a associar a mulher à incompetência administrativa.
Mulheres como Indira Gandhi (Índia), Golda Meir (Israel) e Margaret Thatcher (Reino Unido) sofreram na segunda metade do século passado, cada qual a seu modo, por seus motivos e circunstâncias, essa pressão do masculino. Angela Merkel (Alemanha), Cristina Kirchner (Argentina) e Christine Lagarde (FMI) passam por isso na atualidade. Projetam-se muitas vezes sobre os ombros da mulher que assume o poder algumas expectativas fora de cogitação imediata, tal como evitar a volta do nacionalismo tribal alemão, para salvar mercados comuns, frear repentinamente o declínio econômico argentino e fazer milagres financeiros para socorrer gregos e troianos da bolha especulativa em que se meteram.
Pouco se comentam episódios em que a mulher, mesmo em situações de grande precariedade igualitária, conseguiu feitos impensáveis. Na revista História Viva (Duetto, julho de 2011, São Paulo), tem o relato do seqüestro de moças pelos pioneiros de Roma, como recurso para garantir a sobrevivência da cidade que é emblemático. A atitude romana, contra os vizinhos latinos e sabinos, resultou em um conflito que só foi resolvido porque “as novas senhoras de Roma se colocaram entre seus maridos e seus pais para negociar a paz” (Anne Logeay, p. 29). Esse exemplo de negociação de paz ilustra bem uma habilidade emocional e política decorrente da necessidade de quem primeiro vivenciou a intimidade de outros mundos.
Embora com abordagem limitada ao ponto de vista francês a revista apresenta um painel de recortes voltado para a noção de como os interesses políticos, econômicos e religiosos definiram o papel dos sexos na sociedade. Mostra por exemplo como a mulher romana, mesmo considerada menor de idade perante a lei, participava de manifestações políticas; como os povos alemães valorizavam a virgindade como garantia da conservação das suas características étnicas; como os movimentos revolucionários franceses do século XVIII passaram a reconhecer o casamento “não como uma união sagrada e indissolúvel, mas como um contrato civil, firmado entre pessoas livres perante a lei e que, portanto, poderia ser rompido pelas partes envolvidas (Alain Pigeard, p. 42).
Quem deu uma grande contribuição para que a mulher não fosse mais engessada ainda aos interesses masculinos foram os camponeses que, diferentemente dos aristocratas do século V e VI não faziam alianças familiares (Jean Verdon, p. 35). A ascensão dos pequenos burgueses encheu a vida dos casais de disciplinas apoiadas em arranjos sociais. E foram os operários que dispensaram a legalidade do casamento para viverem juntos. Ou seja, independentemente de causas e contextos, a mulher foi (e talvez ainda seja) mais livre nas classes populares. Esse é um outro elemento a ser acrescido como experiência feminina de constante reinvenção no jogo da funcionalidade dos sexos que a afastou a mulher dos negócios, para ocupá-la exclusivamente das funções domésticas (Scarlett Beauvalet, p. 39).
Da mesma forma que foram criadas tantas barreiras simbólicas e tantas regras de conduta relativas à imagem da mulher, nunca ninguém pôde proibi-la de sentir e de desejar. Claro que ao ocupar espaços tradicionalmente masculinos ela inseriu a sedução na zona de competição do bélico. Pelas opções de destino postas não há mais como insistir na argumentação de que a virtude é sempre um atributo masculino e que o papel de assegurar a descendência continue sendo a única atribuição feminina. Tudo isso torna a missão de Dilma, Gleisi, Ideli, Miriam e de todas as mulheres que estão em qualquer instância de poder na formação da república feminina do Brasil, um desafio não só com relação à gestão, mas com a afirmação da própria alternativa do poder feminino.