Um passeio pelo sertão de dentro
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3
Quinta-feira, 21 de Julho de 2011 – Fortaleza, Ceará, Brasil
Da garagem de casa até a garagem de casa, dez dias depois, foram 2.739 quilômetros que rodamos, minha família e eu, em um novo passeio de carro pelo sertão de dentro. Mais do que saber o que está se passando no interior essa andança é uma maneira de fazer terra, de sentir o chão onde a vida acontece. Nesse ritmo, já circulamos pelos nove estados nordestinos. Desta vez aproveitamos o céu ainda nublado e a caatinga ainda esverdeada da longa estação chuvosa de 2011 e, do dia 6 ao 15, transitamos livremente por onde foi dando vontade.
Deixamos Fortaleza pela estrada de Maranguape, evitando parte do trecho precário da BR-020, passamos pelo Museu do Sertão, em Tauá (que vi nascer no sonho do saudoso Joaquim Feitosa) até a primeira parada em Picos. Mais uma vez o bispo Dom Plínio Luz nos recebeu em sua casa com muita gentileza. Tínhamos estado lá há seis anos, quando a Andréa participou do início da construção da Rádio Cultura, uma FM que hoje é líder de audiência na região picoense. Picos é um lugar que impressiona por ter feira livre todos os dias da semana. É uma cidade onde um dos meus doces favoritos, o de buriti, é vendido em montes que parecem cupinzeiros, com uma faca espetada para o freguês tirar o pedaço do tamanho do seu desejo.
De Picos fomos a Oeiras. Ficamos na Pousada do Cônego, bem na bela e expressiva praça da igreja matriz de Nossa Senhora do Pilar. Batemos um papo agradável com o Sr. Zeno, fundador da fábrica de doces Lili, que fica na cidade de Ipiranga. Da outra ocasião que andamos por aquelas bandas chegamos a visita a fábrica, conhecida por suas compotas de limão, jaca e outras delícias. Ele já não administra mais a fábrica e ocupa o tempo cuidando de um mercadinho em Oeiras. Ficamos de enviar para ele sementes do pé de amora que a minha mãe plantou em Independência e que produz muito bem no sertão. Nossos filhos estão vibrando com a ideia de em mais alguns anos comerem doce de amora da Lili.
De Oeiras, enfrentamos mais de quarenta quilômetros de estrada com capeamento asfáltico deplorável, no sentido de Colônia do Piauí, e daí em diante tudo correu bem. A viagem é encantadora, com acostamentos bordados de capim seco amarelado, separando a estrada da mata de marmeleiro em sua plasticidade outonal. É lindo aquilo lá; tem folhas nas mais fascinantes tonalidades que uma folha pode ter quando em processo de secagem para se desprender dos galhos. A vegetação vira sinônimo de mutação e a paisagem assume o ar de pintura divina.
Em São Raimundo Nonato ficamos no hotel Serra da Capivara. Foi a única reserva feita com antecedência, pois conhecer o Parque Nacional da Serra da Capivara era o único destino certo desse passeio. Há um bom tempo que ele estava na rota da nossa vontade. O nosso filho Artur, de dez anos, traduziu o nosso deslumbramento com aquela obra construída ao longo de quarenta anos pela arqueóloga Niéde Guidon, classificando-o como um dos lugares mais encantadores que já visitamos. E olhe que nessa relação comparativa estão lugares como os Lençóis Maranhenses, Machu Picchu, o mar do Caribe e a Patagônia.
A professora Niéde Guidon nos recebeu de braços abertos em sua residência no Centro Cultural onde se hospedam os pesquisadores e para onde são levadas as peças retiradas das escavações. Ela está indignada com a morosidade na conclusão das obras do aeroporto de São Raimundo Nonato. E com razão. Pela importância do parque e pela demanda de pessoas do mundo inteiro que procuram um significado para as suas viagens, não se justifica o corpo mole que vem sendo feito. Guerreira como tem sido na luta por essa admirável causa Niéde busca uma saída na privatização do aeroporto.
O Brasil, por tudo o que tem conquistado de presença no cenário internacional não tem mais o direito de pensar pequeno. Foi por pensar grande que Niéde Guidon conseguiu a duras penas fazer esse parque chegar aonde chegou. Os exemplos de pensamento grande e da visão de longo prazo dessa respeitada pesquisadora, estão concretizados em trabalhos como o Museu do Homem Americano, que combina peças pré-históricas com alta tecnologia, e a Cerâmica Serra da Capivara, que vende peças desenvolvidas por ceramistas locais para visitantes e para grandes empresas como a Tok & Stok e Pão de Açúcar.
Em sua incansável batalha pela liga entre a pré-história brasileira e o futuro do País, Niéde tem dado ainda uma contribuição na estruturação do Parque da Serra das Confusões, que fica a uma centena de quilômetros de São Raimundo Nonato, com acesso principal pela cidade de Caracol. Fomos lá e, na nossa aventura entre olhos d’água, nichos arqueológicos e uma gruta com exuberante jardim, protegido pela inusitada formação de rochas de arenito, encontramos as pegadas de Niéde e de sua equipe na preservação de sítios como o Alto do Capim e a Toca do Enoque.
De São Raimundo Nonato partimos para Petrolina. Novamente optamos por um percurso alternativo para nos livrarmos das estradas esburacadas. Retornamos por São João do Piauí, aumentando cem quilômetros em um percurso de trezentos, mas chegamos com tranquilidade. Não conhecíamos essa pujante e bem gerida cidade pernambucana. Ficamos surpresos com a limpeza das ruas, os bons hospitais, os bons restaurantes, a urbanização da orla do rio São Francisco e com o crescimento imobiliário e a estrutura de serviços comerciais.
Atravessamos a ponte sobre o Velho Chico e fomos a Juazeiro da Bahia, onde para não dizer que não fizemos nada, visitamos o Museu do São Francisco. Em Petrolina lamentamos apenas a falta de melhores hotéis. Optamos pelo Costa do Rio, seguindo a sugestão de “escolha” do Guia Quatro Rodas, mas a qualidade dessa hospedagem não coincide com a recomendação do guia. Ao deixarmos a cidade fomos conhecer a vinícola ViniBrasil em Lagoa Grande. A plantação em si, irrigada com água do rio São Francisco, a intensidade e o tempo de exposição das videiras ao sol, asseguram aos produtores três safras por ano, o que é um diferencial comparativo de grande valor no mercado de vinhos.
A parada seguinte foi Exu, terra de Luiz Gonzaga. A visita ao Museu do Gonzagão é engrandecedora pelo lado da importância do rei Lua, porém é entristecedora pela precariedade com que aquele patrimônio é mantido. Não deu para demorar muito. Preferimos cruzar logo a Chapada do Araripe e fazer uma visita ao compositor Abidoral Jamacaru, no Crato. Ganhamos o livro/cd “O mistério das treze portas”, de Zé Flávio Vieira, e “Segredos da Natureza, cordel ilustrado de Josenir Lacerda e João Nicodemos. À noite fomos ver o show do Abidoral no pavilhão da Universidade Regional do Cariri (Urca), na ExpoCrato.
Hospedamo-nos no hotel Verdes Vales em Juazeiro do Padre Cícero e não gostamos do serviço. As toalhas cheiram mal e o dono do hotel fica no restaurante mudando a programação da tevê sem qualquer respeito aos hóspedes. A notícia boa é que sentimos um ar positivo no meio artístico com a chegada da nova reitora da Urca, professora Otonite Cortez. Na Lira Nordestina, estava todo mundo animado com os sinais que ela vem dando de retomada do papel de editora da mais importante gráfica de cordel e xilogravura da região. E entre uma subida ao Horto e uma conversa de calçada dos nossos filhos com o Seu Lunga, deu para curtirmos um pouco de Juazeiro na acanhada festa do seu centenário. E voltamos para casa com essas impressões.