O patrimônio do tempo no humano
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3
Quinta-feira, 28 de Julho de 2011 – Fortaleza, Ceará, Brasil
O passado é tão imprevisível quanto o futuro. Uma boa descoberta arqueológica pode mudar a compreensão do que fomos e do que somos. Mas as descobertas que alteram as certezas da comunidade científica internacional, quando ocorridas fora do eixo dominante, necessitam de muita perspicácia para ter um lugar ao sol. É o que vem acontecendo há mais de quarenta anos com o trabalho da pesquisadora Niède Guidon, 78, na Serra da Capivara (PI), onde está a maior concentração de sítios arqueológicos e o maior acervo de pinturas rupestres das Américas.
A comprovação de vestígios humanos no interior do Piauí há pelo menos 100 mil anos contribui para a desconstrução da teoria mais comum de que o homem teria chegado ao continente até 30 mil anos atrás, em migrações pelo estreito de Bering, nas últimas glaciações. Aliás, o olhar inquieto de Niède já está atento à possibilidade de ter sido o Homo erectus, e não o Homo sapiens, o hominídeo que primeiro migrou da África para o resto do mundo, evoluindo conforme as condições regionais. E isso é conta para centenas e até milhares de anos.
Admiro o trabalho, a coragem, a garra e a firmeza de Niède Guidon porque ela não se intimida com pressões retrógradas e age dentro do tempo do humano construindo com sua equipe uma obra concreta, que pode ser vista de perto, como a preservação e a potencialização do acervo natural e cultural do Parque Nacional da Serra da Capivara. Em área com mais de 129 mil hectares, reconhecida há 20 anos pela Unesco como Patrimônio Cultural da Humanidade, o parque foi estruturado e é administrado pela Fundação Museu do Homem Americano (Fumdham), da qual ela é presidente.
Mesmo contando com o apoio possível do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) e com patrocínios da Petrobrás, a Fumdham passa por constantes problemas financeiros e enfrenta a lentidão do poder público em casos como o da demorada construção do aeroporto de São Raimundo Nonato, que facilitará o acesso de visitantes nacionais e estrangeiros ao parque, contribuindo para a sua manutenção e para a economia turística e cultural da região sudeste do Piauí.
Afora a venda de ingressos para visitação, o parque conta com iniciativas complementares, como o funcionamento da lojinha de suvenir, abrigada no Centro de Visitantes, e a realização de espetáculos artísticos ocorridos na Toca do Fundo do Baixão da Pedra Furada e em um anfiteatro localizado logo à frente da própria Pedra Furada – cartão postal do parque – onde uma parede de casa de taipa serve de anteparo no fundo de palco composto por um cenário de monumentais encostas de arenito multicor. Dentre as atrações que movimentam os visitantes, destaca-se ainda o Congresso Internacional de Arte Rupestre e, sobretudo, o Museu do Homem Americano, uma estrutura que junta recursos de alta tecnologia digital e achados arqueológicos em um só espaço incrustado no meio da caatinga.
O Parque Nacional da Serra da Capivara foi concebido e opera dentro de uma adequada visão de longo prazo. Parte dos trabalhadores que ocupavam o local antes da desapropriação foi contratada para continuar sendo o que era; ou seja, para seguir morando no local, mantendo a atividade agrícola. A diferença é que essas pessoas, além de terem se tornado guardiãs do parque, passaram a ser responsáveis pela produção e distribuição de alimentos em pontos estratégicos da propriedade, de modo que os animais silvestres não queiram abandonar a área em períodos de estiagem. Outro exemplo incontestável dessa mentalidade de sustentação é a Cerâmica Serra da Capivara, fabricante de variadas peças decoradas com réplicas de imagens pré-históricas. O casal Carmelita e Nivaldo Coelho cedeu suas terras para integrar o parque e em compensação passou a coordenar uma comunidade ceramista, preparada para a produção de artefatos vitrificados de reconhecida qualidade artesanal.
Com a instalação do parque, os sítios arqueológicos receberam os nomes dos camponeses que ajudaram Niède Guidon e sua equipe a localizá-los. Assim, o visitante aprecia as coleções de comunicação gráfica da nossa vida social pré-histórica, deslocando-se, com guia obrigatório, pela toca do Carlindo, do João Arsena, do Brás, do Nilson e do Caldeirão dos Rodrigues, dentre outras denominações. Esse tipo de deferência também contribuiu para reduzir a vulnerabilidade do parque no que diz respeito à proteção contra a invasão de carvoeiros, caçadores de subsistência e de venda ilegal de animais. O que observei na visita que fiz à região neste mês de julho, foi que esse sentimento de pertença pode até não ser ainda unanimidade, mas é comum o senso da importância do Parque Nacional da Serra da Capivara para o desenvolvimento de São Raimundo Nonato e dos municípios do seu entorno.
Localizado na fronteira geológica que separa uma chapada (com seus paredões verticais, desfiladeiros e boqueirões) e um vale (que se estende até o rio São Francisco), o Parque da Serra da Capivara impressiona pelo conjunto de formações sedimentares, modeladas ao longo de milênios pela força das águas e dos ventos. Uma região que há dez mil anos tinha clima tropical-úmido, com megafauna composta por preguiça-gigante, tatu-gigante, mastodonte e felino dente-de-sabre, dentre outros animais de grande porte, de existência comprovada pela paleontologia, a partir de fósseis encontrados em velhas lagoas e fendas de pedras. Por ali passaram inúmeros grupos étnicos, que variando temas e técnicas deixaram seus mundos simbólicos fixados em uma evolução estilística, marcada por formas geométricas, grafismos morfológicos e pinturas narrativas.
Ao descrever a beleza desse patrimônio artístico-cultural pré-histórico, a pesquisadora Anne-Marie Pessis, professora da Universidade Federal do Pernambuco, nos instiga a observar esses paineis com um olhar que permita ir além do aparente: “O maior caracterizador do estilo Serra da Capivara é a maneira vital e dinâmica com que foram realizadas as figuras e as cenas representadas. Eclode o movimento, e a encenação transborda de alegria e ludismo. Figuras humanas e animais são mostrados em atividades lúdicas, representadas no ponto máximo de uma ação, saltando, por exemplo, com surpreendente variedade de composições e maneiras de ocupar o espaço” (PESSIS, Imagens da pré-história, p. 113, Fumdham/Petrobrás, 2003).
Contemplar essas imagens nos leva a sentir a força do tempo humano e dos múltiplos significados da cotidianidade. Em acesso direto ou pelas passarelas edificadas pela equipe de Niède Guidon para nos aproximar da galeria de imagens fixadas nos paredões da Serra da Capivara podemos ver cenas de adulto brincando de jogar o filho para o alto, pessoas caçando, momentos de sexo individual e grupal, rituais em torno de árvores e outras tantas encenações de dança, luta e performances cerimoniais e de lazer. São escolhas arquetípicas que lembram o modo de vida simples e sublime manifestado nas artes visuais da cultura popular em temas de peças de barro e xilogravura. O patrimônio natural e cultural preservado no Parque Nacional da Serra da Capivara é, portanto, um tesouro geográfico continental e uma relíquia da nossa capacidade de abstração, que guarda o momento em que definimos a matriz da cultura americana.