Tem um fator de contenção de avanços sociais instalado na cultura brasileira que precisa ser pensado em suas entrelinhas. Chamo de ‘complexo de pedigree’ essa barreira comportamental pouco questionada, mas de grande influência nesse tempo estranho que atravessamos. O segregacionismo praticado por pessoas e grupos sociais afetados pelo sentimento de que o humanismo acabou atrapalha a condição de apreensão do movimento sistêmico que organicamente vem se contrapondo a esses transtornos de desrealização.
Esse mecanismo que, de certa maneira, oferece algum alívio a quem vive receoso dos efeitos do desamparo sentido por parte da população que goza de privilégios sem, contudo, ter feito por merecer, aparece em condutas voltadas para as necessidades e desejos particulares como se não houvesse sociedade. Há um dilema nesse caso que é o da autossuficiência versus a incapacidade de viver dispensando o outro indesejável. Isso resulta em refluxo da hereditária vontade de escravizar.
A perda da coragem de encarar a convivência com o semelhante vai ampliando o temor da incompletude e preservando o complexo de pedigree nos mínimos detalhes do dia a dia. A subjetividade está em xeque: a rainha morreu e o rei está cercado. O xadrez das relações humanas carece de novas peças, de jogadas alternativas, mas continuam limitados a torres, bispos, cavalos e peões cumprindo seus papeis e movimentos secularmente definidos.
No livro “Regras para o parque humano” (Estação Liberdade, 2000), o pensador alemão Peter Sloterdijk afirma que a diferença entre animais humanos e não-humanos está na ontologia, esse campo da filosofia que estuda a natureza do ser e da realidade. “Ao fracassar como animal, esse ser indeterminado tomba para fora do seu ambiente e com isso ganha o mundo no sentido ontológico” (p.34).
Ao desenvolverem a criação de mundos, as culturas foram além dos ambientes, dos espaços e do que seria o tempo. A existência estaria no pensamento meditativo, na arte, na literatura, na poesia, na ciência, na religiosidade, nas manifestações cotidianas e na fabulação. Com a redução desses mundos à concentração e ao consumismo, o ser pessoa passou a ter em si mesmo um adversário e no outro um inimigo potencial.
O complexo de pedigree vale-se desse centralismo do si para dispensar qualquer compromisso com o entorno e com o planeta, sob o argumento de que, não havendo garantia definitiva sobre o futuro da Terra, se tire o melhor proveito do que ainda resta. Vale-se para isso dos marcadores de diferenças que penalizam historicamente as diásporas africana e nordestina e os povos originários. Feições e afeições, somente as de autoimagem e aquelas que passam pelos filtros mentecapto das telas.
Um símbolo bem próprio de exercício inconsciente do complexo de pedigree é a Alexa, a assistente virtual que tem nome de mulher e executa servilmente tarefas do comando de voz com ares de “sim, senhor”. Também pode ser alinhada a esse questionamento a modinha “mãe de pet” e “pai de pet”, no que diz respeito à coabitação com um ‘outro’, normalmente com pedigree, claro, que serve de companhia e, assim como a trabalhadora eletrônica, não requer tantas subjetividades relacionais.
Tais virtudes digitais e zoomórficas parecem alimentar o complexo de pedigree implícito no fenômeno nietzschiano da ‘domesticação apequenada’, em que Sloterdijk realça “a luta entre os que criam o ser humano para ser pequeno e os que o criam para ser grandes” (p.41). É evidente que temos nossas razões de ser e viver como quisermos, entretanto, pode ser de bom alvitre estarmos atentos a essas atrações que nos rondam como se não quisessem nada.