O impacto dos efeitos do comércio transatlântico de escravizados no período colonial (séc. XVI a XIX) foi tão estonteante que muitas vezes esquecemos de ter curiosidade sobre a longa e antiquíssima história escravista entre África oriental e Índia. Esse mercado de gente pelas travessias do Oceano Índico está discutido com profundidade no livro “Diáspora africana na Índia” (Ed. Unesp, 2021), do antropólogo austríaco Andreas Hofbauer.

O autor trabalha com o binômio conceitual “diferença e desigualdade”, tendo como base a pesquisa empírica com indianos afrodescendentes siddis, a análise discursiva em contrapontos acadêmicos, contextos históricos e transformações recentes ancoradas nos conceitos de africanidade e diáspora. Como toda boa obra, o livro de Hofbauer elucida e confunde por sua profundidade e amplidão epistêmica.

A importação de pessoas escravizadas pelo Oceano Índico começou antes do século III com os árabes, que já tinham posse de cativos como prática comum. Mas o comércio regular foi estabelecido a partir do século VI, e mil anos depois os portugueses passaram a dominar essa rede comercial desumana, seguidos por holandeses, ingleses e franceses.

A expansão desse tráfico de variadas procedências, portanto feito com gente de cores de pele e fenótipos diferentes, deu-se com a instalação do entreposto de Goa em 1510, que operava ainda as possessões lusas desde Moçambique até o Timor Leste e Macau.

Enquanto o tráfico transatlântico transportou para as Américas 12 milhões de escravizados, o equivalente hoje a toda a população da cidade de São Paulo, o comércio transíndico chegou a um terço desse número, evidentemente considerando-se uma diferença expressiva de séculos, mas também as capacidades das embarcações e os motivos das demandas.

Nas Américas, a produção em lavouras e a exploração de minas fez com que dois terços de escravizados fossem masculinos, enquanto na Índia, por predominar a escravidão doméstica, dois terços da gente cativa era feminino. Nessa conta figuram ainda serviços de segurança de embarcações, guarda-costas, vigilantes eunucos de harém, amas e músicos.

O autor ressalta que em uma sociedade em que o parentesco definia todos os direitos, privilégios e deveres sociais, os escravizados, por terem sido forçados a deixar os parentes para trás, eram vistos como leais e tornavam-se soldados dos califados e sultanatos, conseguindo até posições de poder. Andreas Hofbauer cita o caso do soldado-escravo etíope Malik Ambar (1548 – 1626), que chegou ao topo da hierarquia no sultanato de Ahmadnagar.

Afrodescententes indianos da comunidade siddi de Karnataka, descendentes do povo Bantu da região dos Grandes Lagos africanos (Burundi, República Democrática do Congo, Quênia, Ruanda, Tanzânia e Uganda), comercializados para a Índia entre os séculos XVI e XIX. Foto: Yogesh Pawar.

As mulheres eram forçadas à situação de servas domésticas, amas e concubinas. Havia inclusive uma qualificação por origem: as khurasani (Afeganistão) eram boas para tomar conta da casa; as hindus (Índia), para cuidar dos filhos; as persas (Irã) e Kaffir (Moçambique), para prazeres sexuais; e as transoxinianas (Tadjiquistão), para dar surra nas outras.

A condição de escravidão doméstica reduziu a convivência comunitária e a integração de cativas e cativos ao sistema de castas arrefeceu as referências culturais, sem contar que se assumindo como africanos os afrodescendentes indianos ficavam fora da assistência social. Diferentemente do continente americano, na Índia a palavra ‘negro’ não virou sinônimo de ‘escravo’.

O livro relata avanços no processo de inclusão em programas governamentais (2003), na percepção de que, na África, existem outras pessoas de cabelo crespo, fato que se dá com a chegada da televisão nas aldeias (2010) e a recriação identitária, muitas vezes combatida por chefes religiosos hindus, islâmicos, sufi e católicos que, como outras lideranças sociais e políticas, se sentem ameaçados por essa busca de um humanismo pós-racial, mais próximo da luta pelo fim das desigualdades.

Fonte
https://mais.opovo.com.br/colunistas/flavio-paiva/2023/04/04/escravidao-afro-indiana.html