O veio poético de Adriana Calcanhotto é uma mina a coração aberto. Dele, a artista extrai canções que canta com cativante autenticidade existencial. Em nova escavação de si mesma, ela retirou a matéria-prima de “Errante” (Modern Recordings / BMG), novo álbum autoral, com 11 faixas, que acaba de chegar às plataformas de música digital. Obra com arranjos bem apurados e fartura de timbres a serviço da simplicidade.

Na canção “Prova dos Nove”, ela inicia a mineração do verbo com palmas e batuque sintetizado, depurando a própria constituição como ser e apontando a alegria como o seu sentimento intimamente contido, mas eleito pelo desejo. Como Chico Buarque em “Paratodos”, Adriana se reconhece como alguém pós-raça, de nascimento brasileiro, com corpo italiano, alma lusitana, ascendência sefardita e mátria africana.

Diz que não passa de uma impostora nesse imbricado multicultural no qual tantas contas não fecham. Vale lembrar que tirar os “noves fora” é um antigo recurso pedagógico utilizado para ver se um determinado cálculo está correto; fonte da qual Oswald de Andrade (1890 – 1954) lançou mão para o “Manifesto Antropófago” (1928), e Gilberto Gil e Torquato Neto incluíram na Geleia Geral (1968): “A alegria é a prova dos nove / E a tristeza o seu porto seguro”.

O álbum tem como epílogo a faixa “Nômade”, um gingado filosófico que coloca a cantora em laços de proximidade com as pessoas dos lugares físicos ou virtuais com os quais desenvolve vínculos afetivos. Ela canta: “Não levo nada / Não guardo grana / Não visto a fama (…) Sou tudo o que carrego”. Como os caramujos, ela vai fabricando a casa onde mora com substâncias geradas pelo próprio corpo.

Detalhe da capa do álbum “Errante”, de Adriana Calcanhotto, com referência a foto e carimbos de viagem de passaporte.

Sempre com delicadeza, o corpo do álbum, que é também o corpo da autora, a casa de suas idas e vindas, se mostra por inteiro e, como de costume, ventila referências seminais como a instalação “A casa é o corpo” (1968), da pintora Lygia Clark (1920-1988), em “Nômade”, e o axioma “que seja infinito enquanto dure”, de Vinícius de Moraes (1913 – 1980) em “Larga Tudo”, samba de roda do amor efêmero.

Adriana Calcanhotto chama à racionalidade aspectos da ordem moral no samba-canção “Quem te disse”, no qual afirma que as relações de apego entre as pessoas não têm cor, não têm idade, nem são de gênero. Ainda na zona do despertar da lógica, expressa em “Horário de Verão” uma bossa nova cheia de ondulações da vontade de não mais esperar pelo que não foi prometido.

Claro que em “Errante” não poderia faltar o tom das relações aflitas de Lupicínio Rodrigues (1914 – 1974), tão presentes na obra da sua conterrânea gaúcha. “Levou para o samba a minha fantasia” é o título de uma canção regada a trombone, que tem seu sentido revelado no quarto verso da segunda estrofe: “de ser feliz um dia”.

O drama lupiciniano segue candente em “Era isso o amor?”, que relata a desilusão de quem acredita que fará falta ao outro, e indaga: “Será possível serem amado e amador / Só combustível?”. Outras canções doem assim também como “Jamais admitirei”, uma levada remoída que fala do cansaço da negação, e “Pra lhe dizer”, xote de adeus ao piano e baixo, com uma explícita tomada de decisão: “Vou mudar de você”.

O percurso pessoal da cantora, bem traduzido em “Errante”, tem a potência da circularidade criativa que os neurobiólogos chilenos Humberto Maturana (1928 – 2021) e Francisco Varela (1946 – 2001) chamavam de ‘autopoiese’, que é a capacidade de recriação dos seres vivos. Mesmo que às vezes pareça estar no limite da sua tolerância, a obra de Adriana Calcanhotto parte de um princípio estético-estrutural sedimentado na relação franca do ego com os mundos do seu mundo.

Fonte

https://mais.opovo.com.br/colunistas/flavio-paiva/2023/04/11/autopoiese-de-adriana-calcanhotto.html