Na história da música latino-americana muitas cantoras tiveram suas vozes associadas à alma do continente. Os atos poéticos, musicais e políticos praticados por essas mulheres produziram, com suas imagens acústicas ressoantes, revelações comuns da trama cultural da América de colonização ibérica, e fizeram ecoar formulações discursivas voltadas para o senso de integração das diferenças.
Nesse relicário de grandes intérpretes, temos a peruana Chabuca Granda, a costa-riquenha Chavela Vargas, a mexicana Lila Downs, a argentina Mercedes Sosa, a brasileira Miriam Mirah (Tarancón), a cubana Sara González, a venezuelana Soledad Bravo e a chilena Violeta Parra, só para mencionar algumas das mais emblemáticas.
De todas as que, com seus cantos, veicularam deslumbramentos e desencantos, dores e gozos, tristezas e alegrias, frustrações e contentamentos, medos e bravuras das gentes desse território, Mercedes Sosa (1935-2009) foi a que mais teve influência na aproximação do Brasil com países hispano-americanos.
La Negra – como era chamada em alusão à sua ascendência ameríndia – fez a liga continental gravando compositores excepcionais de diversos países, como o chileno Víctor Jara, o uruguaio Daniel Viglietti, os cubanos Silvio Rodríguez e Pablo Milanés e os argentinos Atahualpa Yupanqui e Horacio Guarany. No Brasil, a maior afinidade de Mercedes Sosa e o seu maior vínculo fraternal se deu com Milton Nascimento.
Há mais de duas décadas, a cantora hondurenho-brasileira Indiana Nomma vem trabalhando com o repertório de canções, milongas, kaluios, toadas e zambas popularizado por Mercedes Sosa, fazendo girar uma arte substancial que movimentou e segue tocando tantas vidas em tantos lugares. Acompanhada pelo violonista carioca André Pinto Siqueira, ela fez um aclamado espetáculo domingo (30/04) no Cineteatro São Luiz.
A poesia intensamente presente no ativismo de Mercedes Sosa aviva o papel dos afetos na política por meio de obras que nos levam a pensar no amor sem receios (Años / Pablo Milanés), na alteridade decorrente do olhar conjunto às camadas de horizontes (Los Hermanos / Atahualpa Yupanqui), na necessidade do artista para que a esperança, o despertar da consciência e a alegria não morram (Si se calla el cantor / Horacio Guarany), na alegoria da angústia em fuga (Alfonsina y el mar / Ariel Ramirez e Felix Luna) e, mesmo em situação de desespero, a aprender a agradecer à existência (Gracias a la vida / Violeta Parra).
A memória compartilhada por Indiana Nomma tem ainda a metáfora perdida da vocação para a solidariedade (Mi unicornio azul / Silvio Rodríguez), a bandeira empunhada por muitas mãos pelo direito de ser livre (Hermano, dame tu mano / Damián José Sánchez Aguirre e Jorge Sosa), o esculturar do caminho escolhido e da crença no que se faz (La maza / Silvio Rodríguez), o estalar da vida no romper da escuridão para poder cantar ao sol (Como la cigarra / María Elena Walsh), a força transgressora de seguir vendo o mundo amando (Volver a los 17 / Violeta Parra) e o abraçar dos povos com suas riquezas, por dentro e para dentro do continente (Canción con todos / Armando Tejada Gómez e Julio Cesar Isella).
Nomma abre o show com uma cantiga do ninar atento (Duerme Negrito), compilada da criação popular por Atahualpa Yupanqui, e termina com um clássico de som, cor e suor (Maria Maria), que Milton Nascimento e Fernando Brant compuseram para a explosão harmônica dos avanços femininos na sociedade. Dez canções do repertório dessa apresentação estão disponíveis nas plataformas digitais no álbum “Mercedes Sosa: a voz dos sem voz” (Mills, 2022), em um inusitado misto de interpretação autêntica e cover, com André Pinto Siqueira ao violão. Alumiando consciências.