Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3
Quinta-feira, 08 de Setembro de 2011 – Fortaleza, Ceará, Brasil
A falta de regras para o uso da internet tem favorecido preponderantemente as corporações do mercado digital e as organizações do crime eletrônico. Esses setores estão mais bem preparados dos que os usuários para fazer valer sua moral comercial, religiosa ou política, contraditoriamente dentro dos padrões novidadeiros característicos da tradicional cultura de massa. Na tentativa de ampliar a segurança no ciberespaço e de proteger a internet pelo que ela tem de bom e assegurar ao usuário uma relação clara com os provedores e com o Estado, estão tramitando no Congresso Nacional dois projetos, o da Lei Azeredo e do Marco Civil.
A Lei Azeredo, de molho há mais de dez anos, tem abordagem criminal, e o Marco Civil, que entrou em pauta no mês passado (24/8), tem caráter civil. Parece-me mais lógico que primeiro se deve ter um Marco Civil, estabelecendo direitos e deveres cidadãos no espaço virtual, para depois tipificar os crimes, embora muitos desses ilícitos cibernéticos e condutas impróprias sejam notórios. Falo do estelionato eletrônico, da captura não autorizada de informações protegidas, dos atentados a serviços de utilidade pública, da interceptação de mensagens pessoais, da inserção ou disseminação de códigos maliciosos, de pedofilia e incitação ao preconceito, para citar alguns.
Parte das decisões a serem tomadas é de ordem política, tais como a soberania dos países na nova configuração multipolar, uma vez que o funcionamento da internet está pensado a partir de protocolos desenhados conforme os interesses norte-americanos, de alguns países europeus e do Japão. A outra parte deve obedecer a questões técnicas, a exemplo do tempo em que os provedores devem guardar as informações de acesso do usuário, com seu respectivo endereço de máquina (IP), para casos de interpelações judiciais, acionadas por quem se sentir efetivamente lesado em sua intimidade, imagem e vida privada.
É fundamental que ao examinar a proposta do Marco Civil da internet, a sociedade brasileira sinalize aos legisladores os temas de seu interesse, para que não haja omissão nem ambiguidades, o que por qualquer descuido pode acontecer em uma lei que estabelece regra geral. Assuntos específicos, como os previstos no Estatuto da Criança e do Adolescente, os ilícitos cibernéticos, contemplados ou não pela Lei Azeredo e os temas a serem tratados pela lei do Direito Autoral, não devem ficar com brechas, sob pena de subjugarmos os interesses do País aos interesses de algumas condenáveis redes formais e informais.
Dois aspectos que considero fundamentais que estejam contemplados no Marco Civil, nem que seja apenas orientando sua providência em mecanismos adicionais, é a questão do idioma e a preservação da memória científica. Sem uma regulamentação nesse sentido, continuaremos obrigados a “raciocinar” na língua dos donos da internet e a abrir mão da linha evolutiva acadêmica, nos casos de citações bibliográficas. É lamentável ver tantas referências bibliográficas de sites e blogs em monografias, teses e dissertações, muitos deles já indisponíveis. Esse tipo de menção precisa ser protegida, a fim de facilitar a visitação de novos pesquisadores aos seus conteúdos integrais.
Outro ponto que percebo como preocupante na discussão do Marco Civil é que ele esteja descolado da predominância do poder econômico, do sistema partidário e eleitoral e de alguns duvidosos reclames democráticos; aquela coisa de tudo pela liberdade, desde que seja a minha, sobre a dos outros. Vira e volta e tenho essa impressão. É que muitos dos ativistas do anonimato não me dão a segurança de que se mexem por uma nova ordem social, mas apenas para se dar bem, reforçando o traço indesejável da esperteza, desde que tire o atraso do tempo em que não pôde copiar os privilégios burgueses que muitas vezes condenavam.
Talvez o problema mais complexo para o estabelecimento do Marco Legal da internet seja o conflito entre anonimato e privacidade online. A defesa pela não identificação de usuários tem inspiração nos traumas sociais europeus, na primavera árabe e no próprio fantasma das fatídicas experiências de ditadura no Brasil, marcados por regimes de exceção que tanto machucaram os direitos individuais e de grupos políticos. O anonimato, como uma premissa para a total liberdade de expressão na rede, pode evitar riscos de vigilância oficial e de invasão de privacidade, mas é antes de tudo abrigo a toda sorte de marginalidade.
Trata-se de um problema difuso, no qual a cidadania tende a ficar deslocada na queda de braços entre o mercado e o Estado. Não é à toa que o patrocínio de programas que driblam o monitoramento na internet, como o Tor, e os que procuram enfraquecer os criadores de conteúdos, como o Creative Commons, são corporações transnacionais, que se beneficiam com situações de vulnerabilidade legal. É provável que organizações mal-intencionadas e até criminosas também estejam por trás da manutenção desse grande “Complexo do Alemão” online, onde a ausência do Estado e a situação de impotência da população resulta nas condições ideais para a sua atuação.
Essa discussão deveria partir do princípio de que a internet é formada por logradouros públicos e que todo espaço público é por natureza um espaço de anonimato. Todo transeunte é, em tese, um anônimo. A perda dessa condição só deve ocorrer quando infringidas as regras de convivência, o que provoca a necessidade de identificação do infrator. Na vida de qualquer comunidade, física ou virtual, o bem-estar e o estabelecimento do equilíbrio social passam pelo respeito mútuo. Esse é um aprendizado que vem desde a vida nômade, da fixação humana em áreas agricultáveis e de criação de animais domésticos, da construção da cidade, dos processos de conurbação ao espaço público da virtualidade.
A revolução ensejada pelo surgimento da internet é fenomenal, mas não é tão distante assim das grandes mudanças ocorridas no mundo com a chegada do automóvel, do trem, do avião, da transmissão de rádio e tevê. Para a complexidade de cada situação dessas a sociedade encontrou formas de estabelecer marcos legais capazes de regular direitos e deveres dos usuários, por meio de sinalizações legíveis, visíveis e universais, da educação de direção defensiva e de normas para o transporte de mercadorias. Parece simples, mas não foi fácil cuidar, por exemplo, das liberdades do ar, quando o espaço aéreo doméstico e internacional necessitou de instrumentos jurídicos para ordenar o fluxo do trânsito “sem fronteiras” das aeronaves.
As redes são logradouros públicos e privados, ambientes de negócios e de convivência coletiva e espaços de circulação que, como as rodovias, as estradas de ferro, o espaço aéreo e as frequências de rádio e televisão, carecem de ordenamento através de regularidades. Nos séculos XIX e XX foram produzidas inúmeras peças legais e códigos de conduta que certamente servirão de balizas para a nova realidade desse início de século XXI. O Marco Civil da internet e suas leis complementares só terão alcançado êxito quando evitarem as infovias de mão única, por onde escoam cargas de bens econômicos e culturais homogeneizantes e muitas vezes em regimes abusivos que vitimam as cidadãs e os cidadãos, reduzindo o seu potencial de construção de múltiplos sistemas sociais, políticos e econômicos, motivados pela riqueza da diversidade cultural e da sustentabilidade.