O tabu do imperialismo
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3
Quinta-feira, 15 de Setembro de 2011 – Fortaleza, Ceará, Brasil
A exaustiva propaganda do poderio militar estadunidense que ocupou os mais relevantes espaços da mídia mundial por ocasião das comemorações de dez anos da trágica derrubada das torres gêmeas de Nova York, em 11 de setembro de 2001, me fez concatenar máximas do escritor e jornalista italiano Alberto Morávia (1907 – 1990) e do compositor e cantor brasileiro Edvaldo Santana. O primeiro dizia que “o diabo não pode salvar o mundo” e o segundo diz que “quando Deus quer até o diabo ajuda”.
Tomei como sinônimo de diabo a ideologia imperialista que, em busca de poder e glória, torna os impérios inimigos comuns da humanidade. A história está cheia de ascensões, quedas e desaparecimentos de impérios e suas influências dominadoras, por força militar ou assimilação econômica e cultural: romano, bizantino, mongol, turco-otomano, inca, asteca, espanhol, português, francês, russo, austro-húngaro, britânico e estadunidense, são alguns desses impérios que se deram o direito de invadir e interferir onde bem entenderam.
Morávia recorreu a contos eróticos para abordar a sedução no incesto e Santana evoca em sua música o incômodo de ser protegido pelo inimigo. Há uma conexão muito ajustada nessas duas formas de denotar o quanto não se justifica mais a existência de qualquer império. Está provado e comprovado que as políticas de expansões hegemônicas não fizeram e não têm como fazer bem ao mundo. E se não cabe mais aceitar situações de domínio territorial, físico ou virtual, resta trabalharmos pela consolidação das tendências éticas ecoplanetárias e de reciprocidade cultural.
O aforismo de Alberto Morávia está com prego batido e ponta virada: não se tem mais dúvida de que com imperialismos haja saída para a enrascada de esgotamento de recursos naturais e de perspectivas humanas em que o mundo se meteu. O desafio maior da atualidade é, portanto, o de dar sentido ao axioma de Edvaldo Santana, ou seja, o de produzir uma transformação social fundamentada na esperança, no desejo de felicidade e na consciência, que possa contar, inclusive, com o que pode ter sobrado de bom dos impérios, a fim de remodelar o mundo com formas sustentáveis de ser e de viver.
A alteração da geografia política, econômica e cultural do mundo terá pouco tempo entre o declínio do império estadunidense e a opção de vivermos em um planeta sem impérios ou a de enfrentarmos a realidade do estabelecimento de um possível império chinês, que já vem sendo encorpado com as sobras das intratáveis proteínas emuladas pelo capitalismo em exaustão. Se pretendemos construir uma autoridade global, apoiada na complementaridade, na interdependência e no multilateralismo, está mais do que na hora de partirmos para a fomentação do tabu do imperialismo.
Uma década antes do ataque às torres gêmeas, o pensador italiano, Umberto Eco, aproveitou a destruição do Iraque, em 1991, por bombardeios de uma coalizão militar voltada para a economia do petróleo, liderada por Estados Unidos e Inglaterra, na chamada Guerra do Golfo, para fazer uma reflexão sobre restrições à guerra. Eco tomou como exemplo a questão do incesto, tratada por Morávia, que virou tabu após a constatação coletiva do seu caráter negativo, como bloqueio à troca em grupos. Para ele, a humanidade começa a perceber a necessidade de transformar a guerra em tabu. “Um tabu não se proclama por decisão moral ou intelectual, mas forma-se ao longo de milênios nos recessos obscuros da consciência coletiva” (Cinco Escritos Morais, p. 25, Record, Rio, 2006).
Assim como os males das guerras, os inconvenientes dos impérios têm sedimentação milenar na formatação da memória coletiva. Comemorações como a de 11 de setembro, na qual a dissimulação é a tônica da tentativa dos Estados Unidos de se reafirmarem como superpotência, podem ter efeito contrário nas circunstâncias atuais. Por trás das imagens chocantes dos escombros, dos depoimentos comoventes de familiares das vítimas e do simbolismo do ataque ao mundo e não a um país, pretendido no monumento construído no lugar onde ficavam as torres gêmeas, está a retórica de um conflito entre Ocidente e Oriente, que, a bem da verdade, é uma guerra apenas dos EUA e de parte dos países europeus.
O fantasma da Guerra Fria entre EUA e URSS, que rondou a geopolítica mundial desde a Segunda Guerra (1945) até a queda do Muro de Berlim (1989) não tem mais espaço nos tempos atuais. A inclinação do pêndulo econômico e cultural do hemisfério norte para o hemisfério sul está redesenhando o poder entre os continentes e as bravatas do aparato de propaganda do império não conseguem mais emplacar suas versões com tanta eficácia. E olhe que a indústria cultural norte-americana trabalhou para isso ao longo da última década. Somente a partir de Hollywood, filmes como Voo United 93, As Torres Gêmeas, 24 Horas, Guerra ao Terror e Nova York – o Renascer da Esperança, ocuparam as salas de cinema para orientar o olhar do mundo sobre o 11 de setembro.
Acontece que nessa mesma década, as guerras do Iraque e do Afeganistão resultaram em mais de 225 mil mortos. Mas as agências internacionais de notícias só realçam os menos de três mil mortos nos ataques às torres gêmeas. Os investimentos de quatro trilhões de dólares, para a movimentação das duas guerras, dessa vez não parecem ter rendido o esperado. Sem contar com a despesa de 75 bilhões de dólares que anualmente o país passou a ter com segurança. E, querendo ou não, todo mundo sabe que os EUA estão mergulhados em uma crise econômica profunda, que é uma crise de inadequação aos tempos. O país está estruturado na cultura do consumismo e do desperdício, totalmente incompatível com as condições do planeta de supri-la e da vontade do resto de mundo de patrociná-la.
O triunfalismo da reação bélica revelado na comemoração da derrota é desconcertante. Em 11/09/2011 a al-Qaeda ajoelhou literalmente o maior símbolo da globalização financeira, que eram as torres gêmeas do World Trade Center, na ilha de Manhattan; acertou o Pentágono, centro do poder militar, e obrigou a defesa estadunidense a abater um avião comercial do próprio país, para evitar um provável choque com a Casa Branca, sede do seu poder político em Washington. O caráter ficcional contido nessa ação fala por si e, numa rara experiência de comunicação os fatos conseguiram ser mais importantes do que as narrativas.
O fato é que as torres não estão mais lá e reacender a dor como plataforma para exibir capacidade de destruição me parece uma dificuldade de lidar com o presente. No passado, esse arroubo de supremacia até funcionou, com a divulgação das imagens dos cogumelos das bombas atômicas que destruíram Hiroshima e Nagasaki, em resposta final ao ataque japonês a Pearl Habor (1941), no Havaí. Hoje, simulações como a da captura de Osama bin Laden, não funcionam mais. Não houve cadáver para exibir como trunfo porque o mentor do ataque às torres gêmeas teria morrido há algum tempo de problemas renais.
A voz do império, embora ainda reverberante, não é mais a mesma. Tanto que a propriedade simbólica da data de 11 de setembro acabou sendo dividida com o bombardeio do Palácio de La Moneda, patrocinado pelos EUA no mesmo dia (1973), matando o presidente eleito do Chile, Salvador Allende, e abrindo espaço para a ditadura sangrenta do general Augusto Pinochet. Isso quer dizer que, em declínio, o último império perde o norte e cai no engano dos seus próprios sofismas.