A língua é a forma com que ordenamos nossos pensamentos sobre a realidade, mas é o lugar da infância e juventude que nos impõe os sentimentos do mundo. Foi com esse raciocínio que, chegando em Praga, escolhi comprar, logo na livraria da estação de trem, o livro A Metamorfose, de Franz Kafka (1883 – 1924) em tcheco (Promena), mesmo que ele tenha sido escrito originalmente em alemão (Die Verwandlung), idioma com o qual sua família judia se expressava.

Nunca lerei essa edição, com seus caracteres tão estranhos, eu sei. A minha vontade de guardá-la como lembrança de Praga foi a maneira que encontrei de sentir a força da presença do lugar em que o escritor nasceu sobre sua vida, e onde ele escreveu (1912) essa obra tão desconcertante quanto atemporal. Ali, naquele território, Kafka viveu um tempo de muitas histórias, conflitos e tratados fronteiriços, linguísticos, religiosos e culturais.

Quando Kafka nasceu, a Boêmia (hoje República Tcheca) experimentava um afastamento do absolutismo e havia o ímpeto de formação de uma sociedade civil, com a criação de partidos políticos e o fortalecimento de referências culturais da região. Tudo muito intenso e cheio de acordos e desentendimentos. Na ocasião de sua morte de tuberculose, em um sanatório austríaco, o país havia montado um sistema escolar com grandes impulsões nas artes, arquitetura, literatura, poesia e nas ciências.

Nesse contexto efusivo, Franz Kafka passou por angústias e iluminações que o levaram a imergir na compreensão das relações humanas guiadas pelo parasitismo, e fez isso com tanta profundidade que “kafkiano” virou um adjetivo para situações indiscerníveis, aparentemente sem solução. Nas páginas de A Metamorfose, que li em português (mas em Praga), o protagonista acorda certa vez e não consegue levantar da cama porque seu corpo tem forma de barata e está com as pernas para cima. Necessita dormir um pouco mais, mas não pode, as preocupações não deixam.

O impressionante nessa situação é que a condição esdrúxula em que ele se encontra é posta em segundo plano porque sua mente só consegue processar informações relativas ao fato de estar atrasado para o trabalho, ao receio de perder o emprego, de não poder pagar dívidas e de assegurar a sustentação dos pais e de uma irmã. Arrimo de família, ele nunca chegara atrasado ao emprego e não poderia suportar aquele alerta de fadiga.

Em casa, os familiares ficam aflitos porque ele não sai do quarto. A tensão aumenta quando o chefe, condolente e desconfiado, aparece para visitá-lo, oferecendo apoio enquanto verifica se não é preguiça. Ninguém parece se dar conta de que aquela pessoa virou uma barata em escala humana. Uns ainda se apressam para buscar um médico (só pode ser uma doença grave) e outros saem à procura de um serralheiro (que possa abrir a fechadura).

Museu Franz Kafka, em Praga, na República Tcheca. Foto: Flávio Paiva

O texto de Kafka é primoroso não somente na interpretação das relações sociais, mas também em visualidades que nos colocam aflitos diante das pressões, cobranças e ameaças feitas ao protagonista em nome do amparo familiar e dos deveres profissionais. A gente percebe o humano-barata em sua alimentação de sobras e comidas apodrecidas, e seu rastejado pelas paredes, móveis e teto da sala. É embaraçosa a decisão de que se tornando improdutivo ele deve ser descartado.

Mais de um século depois de publicado (1915), esse clássico da literatura mundial retrata fielmente muitas das circunstâncias atuais de fragilidade humana, impelida por anseios de libertação que acabam absorvidos pelas sanhas neoliberais e por políticas de varejo, que higienizam revoltas e transformam avanços sociais em produtos de consumo. Tudo isso faz com que A Metamorfose seja uma obra que merece ser lida e relida nos dias de hoje. Há muito de cada um de nós nessa novela ou fábula.

Fonte
https://mais.opovo.com.br/colunistas/flavio-paiva/2023/07/24/a-metamorfose-de-kafka-e-nos.html