A canção no tempo da infância
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3
Quinta-feira, 22 de Setembro de 2011 – Fortaleza, Ceará, Brasil
Rosy Greca desenvolve no Paraná um trabalho de trilhas sonoras para teatro, performances, oficinas, palestras e música para crianças, sempre focada no sentimento de que a emoção está associada à poesia e à beleza. Em 1993 gravou o seu primeiro CD “Gente Criança” e, de lá para cá, já fez uma dezena de registros fonográficos, especialmente do seu trabalho de composições para teatro.
Inquieta com a situação de assédio consumista a que as crianças estão expostas, ela resolveu organizar no livro/cd “A canção para crianças – uma contribuição ao reencantamento da infância” (Gramofone, Curitiba, 2011), reflexões sobre a música para criança, a partir do próprio trabalho e de referências que considera relevantes no eixo Rio – São Paulo, onde a indústria, o comércio e os canais de comunicação ainda concentram suas plataformas de modelagem de produtos e serviços culturais no Brasil.
O resultado é uma obra de grande valor para a compreensão da MPB Infantil. Rosy inicia contando do esforço que fazia quando criança, ao ajudar a mãe a escolher feijões, separando os bons dos que não prestavam para ir à panela. “Aquilo para mim era uma diversão, um jogo que tinha por tabuleiro a mesa da cozinha e por peças, os feijões” (p. 13) lembra, exaltando sua atitude de sempre querer salvar alguns feijões saudáveis para não vê-los morrer cozidos na água fervente e depois devorados por toda a família.
Essa metáfora construída pela autora aplica-se muito bem ao conceito do livro, considerando que Rosy tem como propósito interferir no debate sobre a infância contemporânea, pelo viés da dimensão social da canção. Seu olhar é a um só tempo indagador e reflexivo. Ela quer descobrir quem é mesmo essa criança para quem ela canta e conta histórias. E a melhor maneira que encontrou de perseguir a resposta é compartilhando aspectos da sua própria experiência.
Cheio de curiosidade li o livro e escutei o CD com doze canções da autora em uma tirada só. O trabalho tem a leveza própria da contação de uma artista que em seus argumentos sobre arte, educação e mercado procura entender o que faz. Ela deixa bem claro que está discutindo canção de autor e não canção folclórica ou canção infantil. Explica que a canção para criança é uma composição caracterizada pela existência do cancionista adulto, do intérprete e da criança.
O recorte definido por Rosy Greca lineariza o processo, mas nem por isso reduz a importância do seu livro. Nesse conceito, o cancionista intui, evoca e mergulha no imaginário infantil para produzir. Entendo essa racionalidade como um recurso didático bastante praticado hoje no Brasil, mas estou mais para a compreensão desses processos transferenciais dos adultos para as crianças, que Rosy também aborda à luz do trabalho da psicanalista Leny Magalhães Mrech, como elemento de construção do ser na infância e não como uma tentativa do adulto de querer representar o mundo simbólico da criança.
A posição de Rosy é bem mais aceita nos dias atuais, quando a pedagogização da arte ganha realce. Entretanto, tirando essa pequena discordância de olhar com relação ao motivo da composição para criança, estou em linha com a autora no que diz respeito a uma relativa necessidade de haver uma arte e uma literatura voltada para o universo infantil. Assim como ela, procuro ver a caracterização “infantil” antecedida das palavras canções, teatro, filme, livro etc, como algo bem além de um recurso mercadológico; algo que colabore para a melhoria da percepção dessa forma estética expressiva de elaboração cultural.
Por ser um instrumento de sociabilidade e de narração da nossa experiência social e cultural, quanto mais a canção infantil nascer de uma vontade sincera, mais ela será fator de educação para a sensibilidade. “Como forma de imaginação criadora, essas linguagens operam como fatores indispensáveis de humanização (…) inclusive, porque em sua dimensão de linguagem, atuam, em grande parte, inconscientemente”, diz a geógrafa Júlia Pinheiro de Andrade em seu “Cidade Cantada” (Editora Unesp, p. 68, SP, 2010).
Em “A Lira de Orfeu” (LMiranda, Fortaleza, 2007), a professora Elvira Drummond corrobora com a necessidade de deixar o coração do autor livre na hora de compor e de escrever para crianças, ao tratar do enlace dos fios da literatura e da música nas narrativas tradicionais infantis: a música como meio de sedução, exorcismo, alívio de tarefas exaustivas, memorização, comunicação do invisível e como discurso privilegiado no meio social. O adulto deve, antes de tudo, ter o que dizer para a criança, para que o seu repertório tenha força de atração, de aliviar tensões, de revelar contradições sociais e de dar acesso ao mundo encantado.
O fato de a canção para crianças ter destacado vínculo com o teatro infantil, com o cinema e com a televisão, pode ter levado Rosy Greca a confundir o olhar quando procura citar referências de artistas importantes na MPB infantil. Dentro do conceito de canção artística, por exemplo, ela praticamente reduz a obra da compositora, cantora, atriz e contadora de histórias Bia Bedran ao trabalho que esta fez na TV Educativa do Rio de Janeiro (Canta-Conta e Baleira Verde) e na TV Cultura de São Paulo (Lá vem História). Depois de Braguinha (1907 – 2006), Bia Bedran é a artista brasileira com mais constância na composição de forma sistemática para a infância no Brasil.
Em termos de MPB infantil temos muitas e boas obras pontuais de grandes artistas, muitos deles citados por Rosy em seu livro, tais como Vinicius de Moraes, Toquinho, Chico Buarque, Gilberto Gil, Adriana Partimpim e Arnaldo Antunes. As obras desses artistas têm motivações diferentes das trilhas de artistas também maravilhosos, como Hélio Zinskid e André Abujamra, que fazem músicas para programas como Cocoricó e Castelo Ra-tim-bum. Sandra Peres e Paulo Tatit, com o selo Palavra Cantada, fazem um híbrido de MPB infantil com canções de cunho didático-pedagógico.
Ao se referir às apresentadoras de televisão que viraram estrelas da música comercial para crianças, Rosy alfineta Xuxas e Angélicas com sutileza: “Felizmente nem só de louras bonitas e sedutoras vive o imaginário das crianças brasileiras” (p. 40). Ela manifesta sua esperança de que mais do Brasil que faz canção infantil de qualidade se integre aos movimentos que vêm sendo desenvolvidos em alguns países latino-americanos. Enquanto isso, ela se espanta com a ausência de material teórico sobre o assunto – “A ausência é perturbadora” (p. 104) – e com a predominância das produções musicais dos seriados e desenhos animados importados pelos canais fechados, juntamente com a produção comercial brasileira que segue o mesmo padrão estético e ideológico – “nos dá a clara noção de que estamos diante de uma monocultura musical bastante restritiva” (p. 74).
Rosy Greca transmite a convicção de que a canção representa uma grande força a favor da preservação, da integridade e da plenitude da infância. Daí, seu esforço para ajudar a “devolver o tempo vital, orgânico, essencial, contemplativo” (p. 124) do tempo infantil; um direito que meninas e meninos têm ao encantamento. Esse olhar utópico de Rosy me fez lembrar de quando conheci o seu trabalho musical para adultos, nas movimentações de produção independente. No seu LP “Vitrais” (1986) ela cantava: “Está ventando, Francisca / Tira esse casaco de visom / e vai sentir / o vento carece te assoprar”. Que bom encontrá-la novamente acreditando na liberdade.