Duas léguas depois da praça da cidade serrana de Guaramiranga, a 105km de Fortaleza, chega-se à comunidade da Linha da Serra. A estrada é boa e a paisagem uma beleza. A subida, até a altitude de 930m, encerra a vegetação de Mata Atlântica do maciço e deixa ver o mundão de Caatinga arbustiva do semiárido cearense. Nesse divisor e reunidor de ambientes naturais, vive com familiares circundantes o músico, artesão, luthier, pesquisador, arte-educador e brincante Vanildo Franco.
Há tempos que eu tinha vontade de conhecer o ninho desse artista de tipo raro, movido pela relação de arte e natureza, pelo altruísmo e pelo espírito colaborativo e comunitário. Estive lá por esses dias, usufruindo de perto da sua boa fortuna, abençoada pela organicidade da vida natural e pela ânima da cultura, sob o manto azul da abóboda celeste e suas coordenadas espaciais cosmológicas e cosmogônicas.
Desde garoto Vanildo tem encanto por pífano (pife). Em sua infância de sobe e desce ladeira, conheceu as touceiras de taquara e os tocadores da cultura popular que delas já faziam esse rústico instrumento em forma de flauta transversal. Tem em si a alma do lugar e aprendeu a se enxergar na floresta e a olhar para a cidade com vontade de ver a cultura da serra mais presente em seu núcleo urbano.
Na Escola de Música de Guaramiranga, espaço integrado e processual da ÁGUA, entidade de aprendizados dialógicos daquele município, Vanildo Franco, com o temperamento paciente dos grandes mestres de educação orgânica, exerce atividades nos campos práticos e reflexivos da socialização e da autonomia, dois conhecidos papeis do educar para as possibilidades, tão necessários às culturas democráticas.
Com atitudes sinceras e ternura solidária, ele dá oficinas em outros municípios e estados e participa de movimentações culturais e cidadãs, como a atuação nos espetáculos do grupo cenomusical Dona Zefinha, de Itapipoca, e na Pifarada Urbana, que criou em Fortaleza com o também músico Guilherme Cunha (Fulô da Aurora). No palco, os impulsos vitais de Vanildo transformam-se em gestos expressivos de dança íntima com o instrumento que estiver tocando.
Tudo isso era do meu conhecimento, mas eu não tinha ideia do seu ateliê de criação e vivências artísticas, onde ele constrói pífanos (pifes) e instrumentos de percussão (zabumba, alfaia, caixa, tambor de chão, ganzá e móveis para musicalização infantil) e, também, hospeda músicos, pesquisadores, estudantes e colecionadores que querem construir seus próprios instrumentos em um lugar tranquilo e silencioso.
É pelo pífano que ele tem mais afeição. Em suas pesquisas etnomusicológicas, identificou que a taquara, matéria-prima utilizada por ele para a confecção desse instrumento, está diretamente associada ao ciclo do café de sombra na região, entre os séculos 19 e 20, produção cafeeira especial que recentemente vem sendo valorizada como atração cultural e turística. A taquara é uma gramínea sul-americana de caule oco e segmentada por gomos, um tipo de bambu, com a qual as pessoas trançavam cestos e balaios para a cafeicultura, mas também faziam pife para, nos dias de folgas, animar dramas e forrós.
A taquara germina em área de mata úmida e é colhida por Vanildo na lua certa e no tamanho em que o corte da touceira funciona como estímulo à renovação dessa planta que tem alta capacidade de rebrotar. Imbuído dessa sabedoria ancestral de relação com a natureza, ele manifesta o prazer que tem de construir e de compartilhar a técnica de fazer e de soprar pife em sua oficina localizada no quintal inclinado verde e ventilado da casa dos pais, de onde certamente conta com a consultoria das plantas, do ar puro e do clima suave da Linha da Serra.
Fonte
https://mais.opovo.com.br/colunistas/flavio-paiva/2023/09/18/no-ninho-de-vanildo-franco.html