Diário do Nordeste, Caderno 3, 28/03/2009
O jornalista, escritor e compositor Flávio Paiva lança hoje, no Centro de Referência à Infância (Incere), o livro “Eu Era Assim – infância, cultura e consumismo”
A cantiga de roda ensina: “Quando eu era menino/eu era assim// Quando eu era velhinho/eu era assim/Assim, assim”. Escritor sempre voltado ao universo da cultura popular tradicional e também ao universo infantil, como autor de livros como “Flor de Maravilha” ou de artigos jornalísticos, Flávio Paiva retoma estes ensinamentos na nova cria, um volume de artigos sobre a infância, em dia com aspectos como a cultura e o consumismo, publicados entre 1999 e 2008. Músicas infantis dos livros “Flor da Maravilha” e “A Festa do Saci” serão apresentadas pelo grupo Os Bufões (projeto paralelo da Banda Dona Zefinha), com participação da Orquestra de Sopros de Pindoretama, sob a regência de Arley França, no lançamento de “Eu Era Assim: infância, cultura e consumismo”. O colunista das quintas-feiras do caderno 3 retoma sua identificação com o tema quando completa (no último dia 20) seus 50 anos.
Momento, então, de uma reflexão sobre a maturidade e a infância, mas também de estabelecer, ou melhor, evidenciar, uma ponte entre estes dois momentos. “É na infância que nos preparamos para a maturidade. O ser humano que se constrói nas brincadeiras de criança torna-se um adulto criativo e capaz de alcançar a maturidade sem submissão aos padrões sociais abusivos. Vejo muita gente confundir maturidade e seriedade com sisudez. Na verdade a maturidade é um estágio de equilíbrio que se alcança na vida social e na relação com a natureza. Ser maduro é não pensar que estamos aqui de passagem, mas que somos daqui. Uma pessoa madura é aquela que se mantém lúdica depois de virar adulta. É a universalidade do lúdico que une a vida, da infância à velhice. É por intermédio da brincadeira e do jogo que podemos inverter as leis naturais e a lógica formal do cotidiano, nos momentos inexplicáveis, na aventura e na liberdade de interpretação da vida. Nada é mais humano do que a inquietação de remodelagem do real. A criança, no uso da imaginação, faz experiências que a levam a incorporar saberes, enquanto o adulto, por meio do lúdico, pratica a inversão que o alivia das tensões cotidianas”.
Recado mais do que dado, desde a capa do livro: reforçando o verso da cantiga popular, uma ilustração de Geraldo Jesuíno promove o encontro entre a infância e a terceira idade. “O Jesuíno foi muito feliz nessa ilustração e na capa como um todo. Ele pôs a bengala e a varinha de empurrar aro no mesmo nível de ludicidade, criando um ponto dinâmico de encontro entre o velho e o novo. É muito bom ter uma capa e um título que traduzem bem a intenção do livro, que é revolver a autenticidade do humano na sua organicidade, diante das regras de um modelo calcado no instantâneo e no descartável. A vida precisa ser preenchida de vida e não de morte. A morte faz parte da vida e não o contrário”, discorre.
Futuro consumido
Envelhecimento e infância, no entanto, estão um tanto distantes, no olhar da maioria das pessoas. Elas desarticulam, por exemplo, o imaginário suscitado por Monteiro Lobato, assim como por tradições populares, como a do Saci Pererê. Não por acaso, dois personagens sempre lembrados por Flávio em seus artigos. Ele sugere que, para tentar rever uma sociedade que nega os ensinamentos de Lobato e de Saci, gerando uma terceira e quarta idades que colham novos resultados, “precisamos de vínculos afetivos capazes de romper com a ditadura da funcionalidade, capazes de quebrar o imobilismo, por meio do diálogo da razão com a intuição, da cultura com a natureza e da objetividade com a imaginação”.
O futuro se faz no cotidiano, desde sempre. E dosar a sede consumista se mostra essencial, uma meta da própria vida. “Para existir futuro precisamos deixar existir a infância. É condição indispensável. A expectativa de vida aumenta e com ela o poder de destruição do consumismo. Vivemos uma guerra de sentidos e uma crise de significados, na qual a cultura tem o papel de construção do sentido de destino e de mediação entre o eterno e o temporal”.
O efeito avassalador do consumismo sobre a sociedade brasileira, em tempos de crise ou não, é caracterizado pelo que Flávio define como “mercantilização da infância”. Ele fala em abusos da exploração comercial da inocência, responsável pelo distanciamento do brincar criativo e o estresse nas relações afetivas e educacionais. “O mundo está cheio de crianças com distúrbios alimentares, puberdade precoce, transtorno de sono, sem sentido de pertencimento, enfim, crianças abaladas em sua saúde física, psicológica e emocional, com forte intolerância às regras de convivência social. Felizmente a sociedade está reagindo e começando a interferir nessa bagunça da racionalidade da ambição. Em vários países, o Brasil entre eles, vem se fortalecendo um contrapoder social com resultados positivos de conquistas que barram ou pelo menos reduzem a intrusão da força sedutora dos pedófilos de mercado”.
Independência e pluralidade
Este olhar veemente sobre realidades cotidianas, apresentado semanalmente em sua coluna, começou a ser difundido entre a educação de Seu Toinzinho e de Dona Socorro, na pequena Independência, cuja “sina nordestina”, Flávio já registrou em seu ensaio “Retirantes da apartação” (1995). Os pais são homenageados em artigos que integram o capítulo dedicado à “Pedagogia Lobatiana”. Além deste, há um reunindo artigos sobre “A perna invisível da cultura” (alusão a Saci), outro sobre “O tempo das histórias infantis” (em torno da importância das tradições orais) e um primeiro sobre “Infância e Consumismo”. No final, uma entrevista de Flávio com a educadora Maria Amélia Pereira.
Da infância em Independência à paternidade em Fortaleza, Flávio Paiva se tornou um autor que acredita na “transdisciplinaridade”, daí compartilhar, “sem a pretensão de parecer especialista nisso ou naquilo, com a liberdade dos cordelistas”, sua formação e suas experiências empíricas, através de uma pluralidade que já virou um slogan em sua vida.
HENRIQUE NUNES
Repórter