O mundo vem se misturando cada vez mais e, com isso, caminhando para uma desconstrução do conceito de raça. Nesse percurso, é natural a resistência das culturas hegemônicas, que tentam manter supremacias ultrapassadas, mas também daquelas que querem se tornar dominantes, criando novas linhas de separação, fundadas na retórica das especificidades excludentes.

Neste cenário, amplia-se o aprofundamento de rejeições mútuas, o que dificulta os processos de trocas e apropriações de elementos culturais na trama simbólica e física. O portal que pode levar a uma desejada cultura da diferença tem como senha de passagem o acolhimento ao pensamento diferente, como exercício de convergência do que se tem em comum.

Fazer essa travessia para as margens das diferenças requer abertura para aprendizados de lugares diferentes, pessoas diferentes, experiências diferentes, histórias diferentes e imaginários diferentes, como maneiras diferentes de buscas existenciais. Do contrário, até a dimensão sagrada da religiosidade, do ato de crer, passa a ser reduzida a meros interesses e práticas sociais.

No livro “Pensar diferente” (Alianza Editorial, 2020), o antropólogo italiano Marco Aime sugere que o primeiro passo para o estabelecimento do equilíbrio das diferenças nesse tempo de tantas mesclas e extremismos é partir para a compreensão de que o nosso modo de vida não passa de um dos muitos existentes e possíveis, o que não quer dizer necessariamente que um é melhor ou pior do que outro.

Isso não isenta de responsabilidade e reparação os povos que construíram e constroem riqueza e distinção produzindo injustiças sociais, guerras ou destruindo o meio ambiente. Quando afirma que “88% do patrimônio genético da humanidade é comum a todos os indivíduos”, Aime sinaliza para a condição de uma espécie que está em marcha desde sempre, como a mais invasiva do planeta.

Multiculturalismo na escola. Colégio Oswald de Andrade/SP (Internet).

A questão sai, portanto, do âmbito biológico e recai no campo das diferenças, que é cultural. Daí, tomando por base a ideia de que a cultura é a parte da natureza que compete ao ser humano realizar, Marco Aime nos instiga a observar também que temos em nossas mãos algo excepcional, que é a nossa incompletude. Não ter uma determinada especialização de sobrevivência levou a criatura humana a transformar essa carência em recurso de adaptação.

Na antropologia cultural de Marco Aime, essa capacidade de adaptação resultou em variâncias do projeto humano de sobrevivência. Este ponto específico é perturbador porque se a razão das culturas, enquanto fruto da adaptação, é a sobrevivência, não deveria haver motivo para a destruição da mãe Terra, como vem acontecendo de forma acelerada sob as vontades toscas e os impulsos de medo dos países que se consideram mais desenvolvidos.

Os contextos, os ambientes, as latitudes e as épocas dão aos seres humanos certas características comportamentais, cosmovisões e sentido de destino. O que Marco Aime diz com propriedade é que não existem culturas exclusivas, todas têm mesclas e, por conseguinte, todas são, de alguma forma, multiculturais. A compatibilidade das diferenças, sem privilégios hegemônicos, é um dos segredos da cidadania orgânica em sua grandeza cultural.

É sobre a nossa capacidade de entender, pensar e tomar decisões como membros de uma sociedade e de um planeta que pede uma relação amorosa com o meio ambiente que recai a responsabilidade do respeito e valorização da diferença. O aprendizado da cultura da diferença é uma preciosa descoberta da experiência humana, pois a grande luta pela igualdade é a luta pela convivência e pelo fim das regras injustas na gestão da existência individual e coletiva.

 

Fonte
Jornal O POVO