Nos ‘traços biográficos’ que escreveu para o “Almanaque Mino” (Codecri, 1978), o cartunista Hermínio Macêdo Castelo Branco, o Mino, registrou: “Nasci num desses milhões de dias que existem por aí, perdidos no calendário do tempo”. Como o dia do nascimento dos artistas geniais tem luz própria, o três de maio de 1944 está sempre piscando no céu do riso e da arte, lembrando ao mundo da cultura que, de tanto correr o risco, o humorista e artista visual cearense chegou aos 80 anos em plena atividade criativa.
Cartuns, pinturas, desenhos, poemas, pensamentos e fábulas seguem no dia a dia do criador do super-herói cearense Capitão Rapadura. Dono de estilo próprio, Mino trabalha a trama das imagens, dos signos e das palavras com o método de construção artística pela fantasia e pela necessidade. Observador sensível dos sentimentos e gestos que regem os comportamentos sociais, ele sabiamente passou a administrar uma dicotomia entre o impulso do espírito livre e o insulamento artístico.
A arte, como a brincadeira de infância, serve para as pessoas acessarem o invisível, os mistérios dos sentimentos, e apreender pouco a pouco o quanto é possível mudar a realidade. Isso é um tanto complexo, principalmente para a época em que o Mino foi lançado nacionalmente por Jaguar, Ziraldo, Millôr Fernandes e outras feras que tocavam o semanário “O Pasquim”, a partir do Rio de Janeiro. O Brasil estava no quarto dos cinco generais que presidiram o país durante a ditadura.
Uma das charges publicadas no segundo volume do Almanaque Mino mostra um rei na sacada do castelo observando uma manifestação popular, enquanto comenta com os generais que o acompanham: “Ah, querem reformas? Pois bem… reformarei o palácio!”. Mino tem a sensibilidade de tratar a representação dos fatos como se estes acontecessem no momento da lembrança. Com essa inteligência criativa, o caminho do humor foi ficando estreito para viver.
Refugiou-se em seu ateliê e começou a priorizar a pintura, com a qual encontrou mais receptividade no ambiente circundante fortalezense, marcado pelo consumo de arte, digamos, inofensiva. Nas acrílicas sobre telas do Mino, a força expressiva do conteúdo está sempre além dos temas por ele abordados, independentemente do significado que cada um consegue enxergar na sua razão de ser. Muitos de seus quadros se movem entre cidades, bares, dualidades do universo e vernissages.
O sangue irreverente e cômico do artista foi, no entanto, pedindo passagem por sua veia criativa, e ele produziu delicadas sátiras a obras clássicas em novas formas. Assim, surgiram banhistas usando shampoo Renoir, colombinas pós-Picasso, uma gordinha em mistura de Botero com Miró, dançarinas de Matisse com moças lavando o cabelo suado, Monalisa de quatro olhos para deixar ainda mais enigmática a obra de Leonardo da Vinci e a moça de Johannes Vermeer com um brinco falso.
Nesse movimento foram brotando trabalhos mais próximos do mundo interno do artista e sua empatia com pintores brasileiros e com as problematizações sociais. Fez grafismos a partir da releitura de Di Cavalcanti, do nascimento de Vênus, de Botticelli, e do cafezal de Portinari. Com delicadeza pintou uma Monalisa Nordestina. Nesse leque, abriu hastes com Antônio Conselheiro e o massacre de Canudos, Padre Cícero em mural de ícones culturais cearenses e toda uma ressignificação da estética do cangaço.
Mino chega aos 80 anos pintando, fazendo cartuns e textos bem-humorados para a “Rivista”, que edita mensalmente desde 1999. Na quase solidão do seu ateliê, inventa pitorescas mandalas, engrenagens, circuitos, brinquedos, casais monocromáticos, mulheres em movimento, crianças soltando arraia, beija-flores, músicos, palhaços, jangadeiros e tudo o que o atrai na dinâmica perene do seu tempo.
Fonte
Jornal O POVO