Tem uma criatura nova pronta para povoar as plataformas de streaming de música e de vídeo a partir de abril. É um misto sonoro de réptil e humano, de preto com branco, de masculino e feminino, de frágil e potente, que, tempos atrás, nasceu de uma música transgressora, que conseguiu se mexer diante das forças de exceção e suas máquinas bélicas e mercadológicas de produção de desigualdades e injustiças sociais.
Descendente do cruzamento de Clara Crocodilo, um office-boy (que hoje seria um motoboy de aplicativo) transformado em delinquente pelos efeitos tóxicos de uma corporação multinacional, com o Beleléu, personagem negro descartável e condenado ao fracasso, mas com uma incansável vontade de existir, Crocodilo-Beleléu é o seu próprio objeto e sentido nessa obra que une Arrigo Barnabé e Itamar Assumpção (1949 – 2003).
O novo álbum, ainda sem nome definido, tem 13 faixas e uma introdução, na qual Arrigo datilografa uma carta para Itamar e pergunta: “Que que tem nessa cabeça, Beleléu?”. O Nego Dito baixa em um repertório autoral e de canções que gravou e que se somam a obras do pai de Clara Crocodilo, repaginadas com arranjos de Paulo Lepetit, em uma fusão nuclear de essências, ritmos e pegadas que são fonte de energia desses dois ícones da música independente.
O acompanhamento é feito pelo Trisca, um trio de músicos que fez história na Isca de Polícia, a banda de Itamar Assumpção: Paulo Lepetit (baixo e vocal), Jean Trad (guitarra e vocal) e Marco da Costa (bateria e vocal), todos com seus instrumentos heroicamente surrados. Arrigo toca piano em algumas músicas e, com voz áspera, sílabas corrosivas e olhar teatralizado, projeta o ambiente por onde se move a criatura escamada de duas cabeças: Arrigo e Itamar, como uma espécie de anfisbena, entre o estranho e o admirável.
Esse tributo a Itamar tem a dor como elemento de catálise; a dor das desventuras, das opressões, da solidão e das mutações forçadas do viver urbano marginal. E traz sonoridades tangenciadas por games, quadrinhos e crônicas kafkianas, em que o inverossímil é a forma de expelir as contradições aflitivas, por um lado, em consistência ficcional e, por outro, como permissão de acesso à realidade de onde a obra parte como inquieta inspiração.
As variantes da dor iniciam-se em “Quando me chamar saudade” (Nelson Cavaquinho): “Se alguém quiser fazer por mim / Que faça agora”. Depois de uma travessia por fatos infelizes e isolamentos involuntários, entre as quais “Fico Louco”, “Mal Menor” e “Noite Torta” (todas de Itamar), e de uma espirituosa constatação de que para tudo há um argumento balsâmico, em “Dor Elegante” (Itamar e Paulo Leminsky), Arrigo confirma em “Cadência do Samba” (Ataulfo Alves / Paulo Gesta) o zelo à permanência de uma cumplicidade que nasceu na década de 1970, quando Itamar saiu de Tietê e foi morar em Arapongas, a 40 km de Londrina, terra de Arrigo.
A junção “Nego Dito / Clara Crocodilo”, a primeira de Itamar e a segunda de Arrigo em parceria com o conterrâneo e contemporâneo Mário Lúcio Cortes, traz a fusão de “Benedito João dos Santos Silva Beleléu / Vulgo Nego Dito” com “Esteja preparado / O pesadelo começou (…) Clara Crocodilo fugiu”, em meio a ruídos e interferências da nova criatura em sua eterna luta de operação da vida no estado de racismo entre os vestígios e as vertigens do bestiário das metrópoles.
Crocodilo-beleléu tem natureza composta por duas vertentes artísticas distintas, definidas nas obras dos insuperáveis Itamar Assumpção e Arrigo Barnabé. Com a modelagem instrumental virtuosa de Paulo Lepetit, Jean Trad e Marco da Costa, esse ente sonoro ganha forma própria para se movimentar no registro do fantástico, entre o esplendor e a ruína de uma sociedade fragmentada e caótica.
Fonte:
Jornal O POVO