Sabe-se lá a razão profunda, mas é fato que a humanidade caminha apressada para a autodestruição sistêmica. Entre os fatores mais visíveis das constantes autolesões decorrentes desse desmoronamento da espécie está a concentração de riqueza, a ideologia do consumismo, os blefes da velocidade e da visibilidade, a ignorância negacionista e a neutralização das artes e da literatura.

Diante dessas armadilhas econômicas e políticas, o filme Dias Perfeitos (Mubi), do cineasta alemão Wim Wenders, 78, funciona como facilitador de escuta empática do si, por possibilitar o exercício de percepção do outro que existe em nós mesmos. Isso porque os desejos e as aspirações predominantes estão quase sempre distantes das exigências de sensibilidade de cada pessoa.

Hirayama (Kôji Yakusho), o protagonista, tem pouco mais de 60 anos, quase não fala, mas dialoga bem com o espectador. Nessa conversa silenciosa, mostra como as coisas mais comuns são extraordinárias em suas particularidades. Revela que a rotina pode ser agradável e apreciável quando a noção de beleza, grandeza e tranquilidade tem requinte natural.

As genialidades de Wenders e do corroteirista e produtor japonês Takuma Takasaki, 54, modelaram a autoridade desse contradiscurso nos gestos cotidianos de um limpador de banheiros-butique de Tóquio; alguém que abandonou as dores de uma convivência familiar balizada por padrões financeiros para assumir uma vida com baixa capacidade de consumo, mas com elevado poder de apreciação.

Em seu pequeno apartamento de bairro, Hirayama acorda diariamente com o som de uma mulher que varre a calçada; dobra o cobertor e o colchonete, apara o bigode, escova os dentes, água as plantas, veste o uniforme de trabalho, pega a carteira, o relógio, o celular e as moedas, que deixa metodicamente separados, e desce para comprar bebida para o café da manhã em uma máquina de rua.

Hirayama (Kôji Yakusho) em “Dias Perfeitos”.

Durante o seu deslocamento para o trabalho, Hirayama escuta sons que animam a sua mente a olhar a cidade como um lugar onde habitam as coisas simples, a exemplo de Perfect Days, do músico estadunidense Lou Reed (1942 – 2013), que inspira o título do filme. Nos momentos de pausa em sua tarefa, fotografa movimentos nem sempre observados na vida urbana, como o jogo de sombras e luzes projetado no chão pelo movimento das folhas das árvores ao vento.

As janelas de expansão do seu olhar completam-se com a leitura antes de dormir. Essas aberturas da mente o preparam para ter a paciência indispensável ao exercício do seu ofício, independentemente de como é visto e demandado pelos usuários dos banheiros públicos. Concentrado no que faz, executa o que tem que fazer; e, centrado na existência, observa comportamentos alheios com admiração, como se estivesse lendo um livro da vida ao redor.

Os momentos de interação de Hirayama são relacionalmente sutis e silenciosamente encantadores. Ora se dão por vislumbres de contato – como a partida de Jogo da Velha intercalada por dias com um desconhecido frequentador de um dos banheiros –, ora acontecem em cenas filosóficas de purgação emocional, como a de uma dança cuja motivação é descobrir se as sombras, ao serem sobrepostas, ficam ou não mais escuras.

Wim Wenders oferece em pouco mais de duas horas de duração essa história de um brilhante personagem anônimo que encontrou o outro de si mesmo, com um emprego básico, mas que é fundamental para a saúde de um número infinito de pessoas. Ele mora sozinho, mas não é solitário. Em algumas passagens, quando a realidade deixada para trás insiste em visitá-lo, a rotina se quebra e a paz de Hirayama é perturbada. Mas ele sabe o que quer e segue em frente.

Fonte
Jornal O POVO