Depois de ver a peça “Autobiografia Autorizada”, do ator Paulo Betti (71), na sexta-feira passada (26/07), na Caixa Cultural em Fortaleza, fiquei pensando nas razões que me levaram a sentir esse monólogo, de uma hora de duração, como a maior conquista pessoal e profissional de um dos artistas mais reconhecidos e respeitados do teatro, do cinema e da televisão brasileiros.

A montagem, que, em diferentes janelas, vem circulando pelo país desde 2015, tem texto do próprio artista e direção de sua filha Juliana Betti e de Rafael Ponzi. Baseada em escritos de juventude e em artigos que publicou por três décadas no jornal Cruzeiro do Sul, de Sorocaba/SP, onde passou a infância e a adolescência, essa autobiografia é uma resposta de cunho filosófico a um tempo de exaltadas superficialidades.

Com apurados relatos, preenchidos de bom-humor e poesia, a encenação se dá em variados planos de simultaneidade de uma vida amadurecida e coerente, na qual as faltas e os complementos entram em estado de sublimação. A cenografia é plena em sua simplicidade constituída por projeções de imagens que comprovam a veracidade dos eventos rememorados, por uma casa de pano e por objetos de época, tais como uma quartinha d’água, um microfone vintage e um brinquedo de roda e gancheta com o qual Betti circula pelo palco.

Toda obra é autobiográfica, seja o autor falando de si ou do que o sensibiliza; por conseguinte, quando um artista assume o próprio enredo biográfico, ele está escrevendo também outras biografias. Isso porque as histórias são feitas de passagens e, mesmo sendo diferentes, tornam-se assemelhadas em um ou outro padrão emocional. Neste campo, a Autobiografia Autorizada de Paulo Betti mexe com o que o público tem em comum na compreensão sobre a relação entre humildade e espírito elevado.

Paulo Betti com brinquedo de roda e gancheta, na peça Autobiografia Autorizada. Foto: Flávio Paiva (26/07/2024).

A peça transita por dentro do drama de alguém nascido em uma condição desafortunada, na zona rural do pequeno município de Rafard/SP, neto de imigrantes italianos que, inusitadamente, eram explorados por um fazendeiro negro no final do século 19, situação ainda muito rara tanto tempo depois. O mais novo de uma família de quinze filhos, com pai constantemente internado por surtos esquizofrênicos e mãe analfabeta que trabalhava de empregada doméstica, Paulo Betti une no palco o indivíduo e o ator em um mundo de objetividades e representações.

Em sua Autobiografia Autorizada, Betti não apela para a negatividade dos sacrifícios e situações críticas pelas quais passou. Também não se apresenta como um pobre que venceu. As lembranças do que fez para escapar dos efeitos da concentração e das desigualdades sociais, revigorando o cotidiano na marra, não tem quê de caso de superação. Isso é fundamental para a arte e para o fortalecimento da cidadania, dado que contar uma boa história é uma forma de abraçar fraternalmente quem está na plateia, conectando experiências efetivamente vividas.

Paulo Betti não se vale de qualquer dos personagens que tem interpretado com tanto êxito em meio século de carreira, pois, além de esse conhecimento estar implícito de modo geral, a figura mais preciosa de seu repertório é ele mesmo. Logo, a teatralização acontece, não em um passado idealizado ou rejeitado, mas no mundo interior da sua pessoa, com vivências transformadas na experiência que ativa a sedimentação de lembranças, memórias e sentido de destino.

Ao seguir com essa peça em cartaz, o setentão Paulo Betti dá eco às suas vozes de infância e adolescência, nem sempre ouvidas, fundindo-as à do adulto renomado, e chega integral e dignamente a si, suprindo expectativas de suas fãs e de seus fãs com humanidade nos vínculos entre a realidade e a fantasia. Por isso, essa me parece ser a sua maior conquista.

Fonte
Jornal O POVO