Muita gente pensa que, por não serem legalmente aptas a votar, as crianças não votam. Votam, sim, através dos adultos sensíveis, que observam as falas e gestos de quem se candidata a ser gestor ou legislador na cidade. Temos eleições municipais neste outubro, mês das crianças, e peço licença para reproduzir alguns trechos do meu livro Bulbrax (Armazém da Cultura, 2017), em que faço referência aos temas abordados pelo filósofo Walter Benjamin (1892-1940) aos públicos infantil e jovem.

De 1929 a 1932 ele fez um programa de rádio em Berlim e Frankfurt com esse propósito. De modo especialmente cuidadoso, o pensador berlinense compartilha coordenadas formadoras do senso estético e de cidadania urbana, procurando, antes de tudo, deslocar o ouvinte para os logradouros, onde as pessoas se encontram como elas são em seu dia a dia.

Na crônica em que se refere ao teatro de mamulengos, que toda criança adora, Walter Benjamin vale-se da permissão geral que é concedida à autoridade libertária das marionetes para trabalhar com a inversão de alguns valores estabelecidos pelo poder. Reflete que cabe ao artista fazer isso, de maneira a dar um basta na prepotência.

A infância em situação de rua também foi assunto das suas mensagens espirituosas: “Vou lhes contar sobre a infância de um garoto de Berlim, que foi criança há mais ou menos 120 anos, sobre como ele via Berlim, que tipo de brincadeiras e travessuras havia naquela época”. Instigar meninas e meninos a explorarem a cidade era um dos pontos chave das palavras de Benjamin.

No programa em que ele fala da existência das lojas de brinquedos, age como educador, fazendo a ressalva de que não se deve usar um meio de comunicação para fazer publicidade dos locais de venda de brinquedos, mas sem deixar de sugerir que as crianças zanzem pelas ruas a fim de descobrir onde os brinquedos estão expostos a quem quiser comprar. 

Crianças na cidade, em tela (1988) da pintora cearense Carmelita Fontenelle (1930 – 2020). Foto: Marcos Vieira.

Quer a abordagem seja a respeito do trânsito, quer das antigas escolas, da arquitetura, monumentos, bruxas, contos de fada, bandoleiros ou ciganos, é admirável como Walter Benjamin coloca sempre o uso da cidade em suas palestras. Fluir pelas ruas, conhecer os espaços que a cidade oferece ou que poderia oferecer a crianças e adultos é para ele como uma brincadeira de se localizar geograficamente e no campo da cidadania.

Dentro de casa há também muito o que a criança remexer em suas buscas de compreensão do mundo, se o estímulo à curiosidade faz parte da educação que recebe. Ao narrar a história do pintor, ilustrador e caricaturista prussiano Theodor Hosemann (1807-1875), Walter Benjamin começa perguntando: “Este nome soa familiar a vocês?”. E responde: “Provavelmente, não”. Parte, então, para o argumento provocador: “Nos seus livros ilustrados vocês não vão encontrá-lo. Mas se um dia vocês derem uma revirada naqueles que pertenciam a seus pais e suas mães, talvez possam descobrir este nome na capa”.

Trazendo o pensamento de Walter Benjamin para esses dias de eleição, como aceitar o voto das crianças em uma cidade, como Fortaleza, marcada por tantas deficiências de convívio e sociabilidade infantil, é o desafio de cada adulto que vai às urnas. A existência pública de elementos narrativos vinculados ao universo infantil é essencial para o desenvolvimento das pequenas cidadãs e dos pequenos cidadãos. 

Aprender sobre a cidade é aprender a construí-la enquanto a usamos, enquanto mantemos contato direto com tudo o que a compõe. Neste aspecto, não dá mais para acreditar em candidatos que falam da infância como promessas e projetos de futuro. As crianças têm uma experiência presente e podem votar, sim, se forem ouvidas.

Fonte
Jornal O POVO