Durante as 2h43min em que vi o filme satírico “Não espere muito do fim do mundo” (2023), do diretor romeno Radu Jude, na plataforma MUBI, fiquei me questionando se o estágio de autodestruição a que chegou a humanidade é reversível ou se realmente o novo sistema de acumulação de pobreza é o modelo definitivamente vencedor nos ambientes físico e virtual existentes.

A obra, feita com poucos recursos financeiros, mas com abundância de artesania cinematográfica, conta a história de Ângela, uma trabalhadora precarizada e influencer compulsiva, interpretada pela atriz Ilinca Manolache. Explorada como faz-tudo por uma produtora de audiovisuais, ela faz serviço de motorista e assistente de produção.

A tarefa de gravar depoimentos de pessoas afastadas do trabalho por acidente é o ponto de condução do enredo. Com o vídeo a ser produzido, a corporação interessada pretende limpar qualquer imagem de negligência, transferindo a responsabilidade para a pessoa mutilada, ao tempo em que faz uma simpática campanha em favor do uso de equipamentos de proteção individual.

A história desenvolve-se praticamente dentro do carro dirigido por Ângela, nas locações para onde ela se desloca a fim de gravar as declarações, e nos lugares onde ela percebe situações que podem render curtidas em seu TikTok. O filme é intercalado com cenas do drama “Ângela Continua” (1981), do cineasta Lucian Bratu (1924 – 1998), unindo e separando a Romênia periférica do passado e do presente.

O filme de Jude foi rodado em preto e branco e as inserções da obra de Bratu mantidas em cor, como analogia das rotinas de duas mulheres motoristas chamadas Ângela. A primeira, uma taxista, interpretada pela atriz Dorina Lazar, enfrenta preconceitos de gênero nos dias pacientes de seu pioneirismo, enquanto a segunda reage firme a insultos misóginos em um trânsito estressante. Lazar (83), atua também no filme de Radu Jude.

Arte na parede da casa de um depoente: “É mais tarde do que você pensa”, em romeno.

O escape da Ângela de “Não espere muito do fim do mundo” são os vídeos que ela espalha na internet com o seu personagem Bobita, criado com filtro masculino, e com o qual produz catarses escatológicas em gravações de conotações machistas e odientas, como tem sido comum nas situações midiáticas de desumanidade dissecada. Revela que faz isso como forma de tirar sarro do que está se passando e não enlouquecer.

As circunstâncias vertiginosas por que passa a protagonista não estão apenas em Bucareste, mas nos centros urbanos do mundo dominados pelos avanços da especulação imobiliária. Como se fosse pouca a exaustão do trabalho em condições indignas, ela ainda precisa ajudar a mãe no conflito com um condomínio de luxo que se diz dono da área do cemitério onde fica o túmulo da família. E tem que ouvir do executivo do empreendimento, quando este lhe oferece o pagamento do reenterro, que não é possível seus clientes tomarem café no terraço tendo ao lado uma viúva chorando.

A protagonista vale-se de referências filosóficas, piadas e charadas em seus diálogos críticos e encontra apoio também no rap, no tecno, na música árabe contemporânea e no manele, ritmo tradicional da Transilvânia em sua versão urbanizada. São músicas que falam em “dar porrada no homem morto” e na saudade das “histórias de glória dos fora-da-lei”. Ao final do filme dá para ver como é difícil sentir diferente após acompanhar o impasse sobre a verdade do depoente escolhido e a solução encontrada para satisfazer os interesses da multinacional contratante. Será mais tarde do que se pensa?

Fonte
Jornal O POVO