Ganhei uma passagem em ônibus convencional com destino ao Rio de Janeiro. O bilhete dizia que o transporte sairia de Quixadá no final de uma certa manhã. Não havia alternativa, se eu quisesse fazer a viagem de graça, como pretendia, a condição era aquela: Quixadá – Rio de Janeiro, somente trecho de ida.

Na porta da sede cearense do antigo DAER, atual DNIT (Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes), no bairro de Cajazeiras, Km 6 da BR-116, onde consegui o tíquete gratuitamente, senti orgulho daquela conquista que, mesmo sem saber como, me levaria a apresentar em uma faculdade carioca o meu primeiro livro.

Com receio de perder a hora da partida, dormi no dia anterior na rodoviária de Quixadá, a 170 km de Fortaleza. Na mochila, poucas coisas de uso pessoal e mais de 70 exemplares do livro “A face viva da ilusão” (Ed. Paulo Peroba, 1982), recheado de prosa e verso experimentais.

Acordei com a luz do dia e fiquei observando o movimento das pessoas que chegavam para trabalhar e, como eu, para viajar. Na lanchonete do terminal rodoviário tomei um saboroso copo de leite com morango, sem saber que aquele sabor passaria a ser questionado por mim no dia do embarque de volta.

Estudante universitário, 23 anos e empolgado por ser autor de um livro prefaciado pelo poeta Francisco Carvalho (1927 – 2013) e pelo contista Moreira Campos (1914 – 1994), ambos escritores da minha admiração, sequer me dei conta de que a poltrona no ônibus não inclinava ou que era muito apertada.

Fiquei hospedado em um dos cômodos reservados a estudantes da SUAM, hoje Unisuam (Centro Universitário Augusto Motta), em Bonsucesso, zona norte do Rio, que estava promovendo um seminário sobre cinema brasileiro. À época eu pensava em escrever um roteiro para cinema do livro “O sal da terra”, do escritor cearense Caio Porfírio Carneiro (1928 – 2017).

O auditório era bem grande e estava lotado. As pessoas aguardavam o crítico literário e ensaísta Afrânio Coutinho (1911 – 2000) e, por questões de saúde, ele não pôde comparecer. Dirigi-me imediatamente a uma pessoa da organização, mostrei meu livro e disse que poderia fazer uma fala sobre o que me movia a escrever e como havia feito a viagem Quixadá – Rio de Janeiro.

Waldeck de Carvalho, Flávio Paiva e José Maria de Souza Dantas. Rio de Janeiro, 1982.

Deu certo. Ladeado pelo linguista Waldeck de Carvalho, da Universidade de Brasília, e pelo presidente do Sindicato dos Escritores do Rio de Janeiro, José Maria de Souza Dantas, contei da satisfação de produzir literatura e poesia de forma orgânica, e do quanto esperava vender os livros que levava comigo, a fim de poder comprar a passagem de volta. Não deu para quem quis. Todos os exemplares foram vendidos na escada de descida do palco.

Aquele encontro com pessoas desconhecidas, que abraçavam calorosamente a mim e aos meus escritos, reforçou o alcance da estrofe do livro em que afirmo: “O horizonte / é o lugar / em que estamos!”. Estar fora do campo visual definidor de sensações e possibilidades é uma forma de carregarmos o horizonte conosco, em quaisquer circunstâncias da vida.

Esse sentimento ficou mais claro para mim quando cheguei à rodoviária do Rio de Janeiro, retornando para Fortaleza, e o suco de morango que pedi na lanchonete não tinha para mim o gosto de morango. O vendedor me mostrou a fruta de verdade, que, até então, eu não conhecia. Foi quando percebi que o sabor de morango que eu adorava não passava de aromatizante.

Fonte:
Jornal O POVO