Sempre chamou a minha atenção a forma como o educador social Alemberg Quindins, 60, dá mais importância a fatos existenciais do que a verdades sociais postas, mas que nem sempre efetivamente acontecem. Sua percepção do real está presente nos sopros que dignificam a infância na Fundação Casa Grande, nos ares integrados da política de organicidade cultural do Sesc-Ceará e em tantos outros lugares ventilados pelo modo justo e cooperado com que ele promove o lugar do humano na coletividade.
O olhar extraordinário com o qual Alemberg age perante o mundo, a natureza, a arte, as manifestações populares e as relações entre as pessoas é o de quem não esperou ser classificado técnica e epistemologicamente para exercer o papel de ser criança, adulto ou ativista. Sua vida tem a beleza literária da fartura de amor natural, inerente aos espíritos criativos em permanente busca de realização.
A história de Alemberg tem a força existencial do personagem André, do romance “Lavoura arcaica”, de Raduan Nassar, no sentido das amarras patriarcais a que ambos foram submetidos. Tem também o aperto no peito que o totem do pai representou para Franz Kafka (1883 – 1924). O conflituoso meio familiar da infância de Alemberg foi agravado com a retirada do pai, com os dois filhos homens, para Tocantins (território então pertencente a Goiás), abandonando a mãe e suas duas irmãs.
Como se não bastasse essa separação física, Alemberg e o irmão foram açoitados com cipó, com a advertência de que seriam castigados novamente, toda vez que chorassem de saudade. Essa foi a marca que o desafiou à desobediência com o passar dos anos. Com o pai falecido e já amplamente reconhecido pela relevância do seu trabalho de educação social prática, Alemberg decidiu devolver à mãe o filho que dela foi tirado, e receber dela a mãe que dele foi afastada.
Os diversos mundos que as memórias dele e dela podem conter estão agora sendo revolvidos pelas batidas do pulsar já não mais oculto dos seus corações, entre calores curativos de trocas poéticas: ele tocando violão para ela e ouvindo dela histórias que nunca imaginou ouvir, em relatos que desembaraçam afetos resultantes do vácuo criado com a longa ausência da respiração maternal.
Sobre essa descoberta incomum do amar e do ser amado, escutei do próprio Alemberg que não há busca do passado, mas, sim, o deleite de uma reaproximação real que parece irreal. Não há lugar do pai para ser usurpado por ele, nem sentimento de culpa por não ter querido saber da fonte materna durante anos. A simbologia da mesa de casa em Alemberg está rodeada de crianças e familiares, acendendo candeeiros de esperanças, e nunca de arrependimentos.
O estorvo da falta de acesso à mãe, pode ter transformado Alemberg em uma pessoa desajeitada para o amor de entrega a dois. Casou-se duas vezes e, em ambas, com a existência antecipando os fatos; fosse na busca de vestígios arqueológicos para a reconstrução histórica do mundo onde nasceu ou, no auge da pandemia, adormecendo com leituras distantes de princípios que regem a cumplicidade das almas.
Alemberg tornou-se um ser apaixonadamente autêntico, que atravessa a realidade nas suas dimensões memorial, histórica, cultural, geográfica, imaginária e espiritual, deslocando-se entre a experiência de desaparição e o espanto da vida errante. Faz de tudo isso poesia e, como poema, seu realismo existe, a despeito da compreensão ou não dos que acham que sabem demais… e, quase sempre, realizam pouco.
Fonte
Jornal O POVO