A crônica é uma manifestação textual cada vez mais imprescindível em um tempo trançado por conexões digitais. Ela quebra a instantaneidade dos posts compulsivos porque requer um mínimo de atenção do olhar e de senso literário para dar realce e perenidade a temas nem sempre observados na trama social cotidiana e seus aconteceres. 

Cronistas de Fortaleza têm conservado referências a bens culturais da cidade que atiçaram seus sentimentos e percepções. Alguns desses registros integram a antologia “Fortaleza – Poéticas do Passado” (Edições UFC), organizada pelo professor Francisco Silva Cavalcante Junior, que será lançada hoje (4) no auditório da Reitoria da Universidade Federal do Ceará, em evento de amor por Fortaleza. 

Com o intuito de chamar a atenção para a importância de se viver em um lugar de que se gosta muito, será lançado ainda o edital “Fortaleza Amada”, por meio do qual a universidade pública convida as pessoas para que expressem o quanto amam a cidade, em crônicas que serão selecionadas e compiladas em livro que homenageia os 300 anos de Fortaleza, a serem comemorados em 2026. 

Haverá também uma mesa redonda formada pelo reitor Custódio Almeida, o prefeito Evandro Leitão, o biógrafo Lira Neto, que está com a encomenda de escrever o livro dos 70 anos da UFC, e eu, na condição de autor dos livros Bulbrax – Sociomorfologia Cultural de Fortaleza (Armazém da Cultura) e Fortaleza – De Dunas Andantes a Cidade Banhada de Sol (Cortez Editora). 

Ilustração de Mário Sanders para o livro “Bulbrax”, de Flávio Paiva.

Movimentações como esta estimulam relações de cumplicidades na dinâmica urbana. A natureza da crônica é mostrar com estilo descobertas e surpresas de detalhes da vida diária, despertando-os em novos significados. O que dizem as esquinas, o que falam as praças e o que observam as ruas com relação ao que se faz nos logradouros e nas vias públicas pode ser revelado na poética do presente. 

Nos escritos dos que vieram antes, Fortaleza é recorrentemente associada a “mulher bonita”, “menina-moça”, “namorada”, “mulher amada”, “moça pobre, mas vaidosa”, “noiva do sol” e a famosa “loura desposada do sol”. Um olhar tão orientado por padrões masculinos e raciais que, além de insinuada como mulher, ainda é exaltada como loura. 

A cor da pele e a mentalidade de colonizado aparecem no reforço feito em uma crônica que ressalta a ideia de cidade “filha da lenda e do poema / do amor do Guerreiro Branco / com a formosa Iracema”. Complexos comparativos com outras capitais nordestinas, típicos de uma Fortaleza em estado de personalidade vulnerável, estão presentes em forma de versos: “Não tens Capibaribes ao luar. / Não tens ilhas defronte. / Não tens pontes”. 

A despeito desses traços de época, que, trazidos para os desafios da atualidade, perturbam a qualidade cidadã na evolução da cidade, o relevante no que foi escrito por pessoas que seguem vivas em suas obras é que muitos cronistas do passado se referiam a Fortaleza como “cidade amada”, “tão bela e musical como um poema”, que “faz bem à alma e ao coração”, um amor guardado, cultivado e cantado “muito e sempre”. 

A iniciativa da UFC de disponibilizar maneiras amorosas com que os cronistas de Fortaleza trataram a cidade no passado e, ao mesmo tempo, de estimular a produção de novos escritos sobre a “cidade amada” é um chamamento à coletividade para que expresse sua afeição por Fortaleza, a fim de que a cidade saiba desse amor. Quanto mais se ama um lugar, mais eficiente é a sociedade em seus cuidados consigo e com o mundo que habita. 

Fonte:
Jornal O POVO