O que parecia para mim apenas uma visita ao Museu do Ipiranga em São Paulo, que esteve fechado por nove anos para obras e restauros e foi reaberto em 2022 com exposições de pinturas e esculturas de história representativas dos acontecimentos e personagens associados ao processo de construção do Brasil, revelou-se uma luz na minha maneira de pensar sobre os tratamentos mais adequados que se podem dar às partes do patrimônio cultural que entram em dessintonia com a consciência social e política.
O fato de a equipe curatorial do museu, que pertence à Universidade de São Paulo (USP), ter assumido que o enredo da historiografia simbolizado no seu acervo é uma das versões da história do país, e não uma história única submetida às imposições paulistas, já abriu a possibilidade de apreciação mais relaxada da compreensão do discurso visual instituído na formação etnocêntrica colonial e seu caráter hierarquizante, humanamente desigual e socialmente assimétrico.
O edifício monumental, inaugurado em 1890 como marco da Independência do Brasil formalizada em 1822 e localizado dentro do complexo do Parque Independência, está muito bonito, bem cuidado e esplêndido. No momento, oferece exposições voltadas para os campos do entendimento da sociedade e do próprio museu. Todas atraentes e consistentes. Uma delas, porém, mexeu comigo de maneira mais intensa e profunda, a exposição “Passados Imaginados”.
Entre uma interjeição e outra, tive simultaneamente a impressão de familiaridade e o sentimento de estranheza diante dos originais daquelas pinturas que tanto vi impressas nos livros escolares, mas que ali eu contemplava pela primeira vez. Essa experiência ganhou ares mais notórios por acontecer em um momento da vida brasileira em que aquelas obras já não dizem mais o que quiseram dizer, mas estão ali revividas por sua beleza artística e pela história que têm por trás do que as motivou a existir.
Circular por aquelas salas enfeitadas de arte foi como transitar nostalgicamente pelas páginas dos meus livros de infância, sentindo-as se fechando como se fossem me esmagar. Nessa ambiguidade lúdica e trágica, percebi a genial sutileza dessa proposta de exibição pública de obras que foram utilizadas para dar forma ao nosso imaginário coletivo e, sincronicamente, despertar cada visitante do museu para a tomada ou reforço de consciência com relação à própria memória.
Diante do óleo sobre tela “Independência ou Morte!” (1888), com mais de sete metros de largura e mais de quatro de altura, no qual o pintor Pedro Américo (1843 – 1905) exibe a glória do príncipe regente ao declarar a emancipação do Brasil, enquanto guerras e derramamentos de sangue ocorriam em várias regiões do país no enfrentamento da resistência portuguesa, é natural que se reimagine essa memória.
Muitas outras obras emblemáticas estão expostas naqueles recintos grandiosos e instigadores do Museu do Ipiranga. Por oferecer uma abordagem especial de tesouros artísticos e culturais que passam por revisões históricas, a exposição “Passados Imaginados” é uma oportunidade de reflexão sobre o contexto de cada um, mas também um chamamento para a importância de aprendermos com a evolução dos processos e conquistas sociais.
Fonte:
Jornal O POVO