Amazônia, o Brasil censurado
Artigo publicado no Jornal O Cometa Itabirano, página 1
Quarta-feira, 01 de Agosto de 1984 – Itabira, Minas Gerais, Brasil
Só ouvimos falar da Amazônia através de metáforas da verde mata. Há um filtro censor nos meios de comunicação de massa que só permite que nos cheguem informações daquela região coadas em pano fino. As notícias de que o Grupo Executivo de Terras Araguaia-Tocantins – GETAT faz distribuição de terras para trabalhadores, saem na imprensa convencional. Todavia, ninguém pelo menos levanta a hipótese de que, como está sendo feita, a ação desse órgão federal não passa de um mero suavizador de tensões para a entrada do capital estrangeiro na região. É também uma maneira de oferecer mão-de-obra barata, assentada em pontos estratégicos. Por isso, o povo brasileiro que não habita a floresta vive sem noção da causa chave do fascínio que as multinacionais têm por aquela terra que, muitas vezes, sequer nos lembramos que é parte do Brasil.
O sombreamento dessa realidade sempre me inquietou. Ficava a imaginar o que ocorria naquela imensidão de reserva da nossa biodiversidade. Que tipo de todos os tipos de coisa viviam por ali, como viviam, quais seriam as suas tonalidades reais. Parecia-me difícil saber. Poucos dados não saciavam a sede que fatigava minha mente devastada pela ilusão imposta através da mídia. Até que um dia resolvi ir ver a Amazônia de perto. De mochila nas costas consegui chegar ao Baixo Amazonas, região do rio Araguaia. Meu primeiro espanto foi a constatação de um escabroso mugido no fundo do chamado inferno verde. Isso mesmo. No lugar de reservas indígenas, deparei-me com muito gado e a floresta sendo destruída por imensas queimadas para a criação de pasto.
Após atravessar o rio Tocantins e logo à margem oeste do rio Araguaia, no sul do Pará, cheguei a Conceição do Araguaia. Uma cidade habitada por intrusos que de tudo fazem para “se fazerem”. Lá vi o latejar das bactérias que inflamam aquela imensa ferida. Nada posso melhor aqui apresentar para traduzir o lugar, do que a parte de uma estrofe da música “A Terra” (R. Figueiredo / Francisco F. da Silva) que naquele momento participava do XI Festicon, um festival local de MPB. “Não posso acostumar / ver meu sangue derramar / e ter que ficar calado”. Esta é uma face da moeda. A outra, a mais festejada, estava bem estampada na presença do cineclube Antônio das Mortes, de Goiânia, que com o apoio da prefeitura e de um grupo de teatro local filmava “Conceição my love”. Total surrealismo.
Mas em Conceição do Araguaia encontrei também muita gente trabalhando para mudar essa realidade. Com o Padre Ricardo Rezende Figueira, coordenador da Comissão Pastoral da Terra Araguaia-Tocantins, pude ver algumas chagas da floresta. Enquanto conversávamos na sede da CPT, um céu negro estampava sua toalha de estrelas fosforescentes que, pela janela, ajudava a amenizar o calor sufocante. A tensão era tão grande que o inesperado pulo de um gato na janela fez o padre me arrastar com força para debaixo da mesa. Depois ele me contou que nunca anda pelas mesmas ruas, sempre procura variar de caminho, como forma de evitar encontros indesejáveis. Contou também que toda a documentação relativa a questão da terra tem cópias de segurança guardadas com gente de confiança em Belém, São Paulo ou Belo Horizonte.
Olhamos fotografias da fazenda Vale do Rio Cristalino – Volkswagen (uma das que mantém trabalhadores escravos em seus domínios). Uma coisa fabulosa. Sua beleza é inversamente proporcional à condição de penúria de seus operários. E imaginar que seus 139.000 hectares foram beneficiados pelos cofres públicos, com financiamento de 90% de seu investimento viabilizados através de incentivos da Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia – Sudam, com uma taxa de juros negativa e, de colher de chá, os famosos subsídios fiscais. Aliás, a Sudam desviou nosso dinheiro para projetos de grandes grupos nacionais e estrangeiros, entre eles, Bamerindus, Bradesco, Sílvio Santos, Pacaembu, Nixdorf e tantos outros que resolveram criar gado na floresta. Recolhi algum material literário e jornalístico da região e, depois de ler e comparar com o que testemunhei, é que pude perceber quão pouco sabemos da Amazônia e da razão das “feras” multinacionais gostarem tanto de lá.
Em 1967, as autoridades brasileiras autorizaram os Estados Unidos a fotografar todo o país através de satélites que possibilitam com segurança detectar riquezas no solo. Assim sendo, uma grande área correspondente ao norte de Goiás, sudeste do Maranhão e sudeste do Pará, comprovou ser uma das mais ricas regiões do globo terrestre. O que se poderia esperar dessa investigação? Ora, o que normalmente ocorreu e está acontecendo. Há horas em que penso que está se repetindo na Amazônia tudo o que o litoral brasileiro sofreu, com a destruição da Mata Atlântica. E olhe que, no tempo da colonização portuguesa, os recursos de exploração eram bem modestos em relação aos dias atuais, quando os gringos são capazes de saquear toda uma montanha de manganês, como fizeram com uma que havia no Amapá. Se há cinco séculos o Brasil era uma mera colônia de Portugal, hoje o que somos? Se a Amazônia abarca cerca de 59% do território nacional e está cheia de “posseiros” multinacionais e de novos bandeirantes, o que será necessário para o Brasil recuperar o “leite” derramado?
Sabemos que os projetos faraônicos são muitos. Fazendas como a Bodoquena com 1.000.000 de hectares, várias pistas de pouso, dezenas de quilômetros de estradas de rodagem e estrada de ferro, com estações internas, apesar de 49% ser propriedade do grupo Rockfeller; ou a Suiá Missu, com 217.000 hectares, do grupo italiano Liquifarma; frigoríficos como o Atlas, que conta com acionistas de peso, tais como Volkswagen, Supergasbrás, H. Plambeck, Bradesco, Sul-América de Seguros, Atlântica de Seguros, C.A. Rio Dourado, Cetenco, Xerox e Encol; os grandes projetos como Carajás, Jarí ou Tucuruí, este último um apêndice de um dos maiores complexos industriais de alumínio do mundo, a Albrás/Alunorte, um consórcio nipo-brasileiro tendo à frente a Mitsui, a Sumimoto e a Mitsubishi, conforme relato no livro “Sentença”, do jornalista Rivaldo Chinem.
A depredação das matas se faz de maneira sistemática. É uma séria ameaça ao futuro da Amazônia, quando, se sabe, não há qualquer tipo de replantio (até árvore frutífera é proibido plantar nas fazendas para os trabalhadores não saírem da dependência da fome) e nem se pensa em fazer reflorestamento porque os investidores na área o consideram antieconômico. Precisamos saber mais dessas coisas, precisamos tomar mais precaução quanto ao futuro da Amazônia. Talvez ainda haja tempo para a construção do equilíbrio sócio-ambiental em um país que, segundo o próprio Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, IBGE, mais de 60% da população não tem qualquer propriedade e vemos nossas ricas terras entregues ao usufruto escravista do capital estrangeiro.