Diário do Nordeste – Caderno 3 – Coluna Flávio Paiva, 01/11/2007

Ilustração: Ohi 
A mentalidade de modernização, assumida especialmente pelos grandes centros urbanos brasileiros, a partir da segunda metade do século passado, acabou rejeitando deliberadamente muito do imaginário que foi desenvolvido no processo de formação do Brasil. Com a negação dos elementos da cultura florescida no mundo rural, as cidades brasileiras cresceram faltando significativos pedaços de sua alma, dentre os quais se destacam aqueles formados de conteúdos lendários. 
O Saci é um mito ecológico indispensável à necessária reinvenção do imaginário brasileiro, tão pressionado pelo modelo dominante do consumismo. Os projetos de urbanização, de revitalização das praças, de resgate das áreas verdes isoladas pela especulação imobiliária nos centros urbanos, de cuidados com as árvores em situação de rua, de conservação e preservação dos diversos biomas brasileiros e de educação ambiental precisam contar com o poder dos nossos mitos e com a força participativa da infância. 

A educação ambiental não depende apenas de estudos e análises racionais, nem da criação de órgãos administrativos ambientais, de política ambiental, de programas de reciclagem, de unidades de conservação e campanhas de conscientização. A participação dos seres fantásticos das matas é fundamental nesse processo, considerando que o fato do mito eclode na dimensão do imaginário, mas se realiza no cotidiano das pessoas. A verdadeira consciência nasce quando aceitamos a companhia das coisas que não existem, no despertar da nossa vontade de enxergar mais do que os nossos olhos vêem. 

A potencialização da força do imaginário de brasilidade é uma questão de política pública e de obrigação da sociedade. Ações simples e baratas como, por exemplo, a disponibilização de telas com imagens dos nossos mitos para camisetas. A maior dificuldade de quem estampa camisetas é conseguir telas com motivos brasileiros. Enquanto isso, os temas e personagens estrangeiros são facilitados e oferecidos gratuitamente para quem quiser reproduzi-los. 

Emboabas, tropeiros, boiadeiros, escravos transferidos e fugidos espalharam a figura do Saci pelo Brasil, tornando-o um mito integrador e de abrangência nacional. Ele tem a identidade do múltiplo. Carrega em sua essência variantes sedimentadas conforme o devaneio dos seus narradores. O Brasil conta com um exército de mitos ecológicos. O Saci Pererê é o mais destacado deles por ser uma síntese do imaginário nativo, negro e branco e por reunir muitos dos atributos ambientais manifestados nos mitos regionais. 

Em sua versão mais antiga, o Saci tinha barba de bode, olhos vermelhos e no lugar do gorro alguns apareciam com uma cuia na cabeça pintada de urucum. Na grande enquete que o escritor Monteiro Lobato (1882 – 1948) fez em 1917, para entender e ressignificar o ícone do Saci, as várias histórias contadas pelos leitores de diversas regiões brasileiras testemunham a força desse mito tupiniquim na textura psíquica brasileira. Lobato chamou o Saci à cidade para lembrar e provar que ´esta terra tem uma alma´. Hoje, 90 anos depois, a sustentabilidade é uma questão urgente e a revitalização do Saci cada vez mais necessária. 
O mundo da oralidade, da cultura popular, não obedece ao rigor do método científico, por isso também não está subordinado a seus limites. O trânsito da compreensão, os atributos misturados, compartilhados, faz com que uns mitos emprestem características a outros e o importante nesse sincretismo mítico é que cada ser fantástico seja aceito como um valor cultural respeitável no território onde se relaciona. A figura do Saci Pererê é identificada como emblema capaz de se estender com desenvoltura do simples ao complexo, na organização do nosso imaginário sedimentar. 

Como o Caipora, o Saci gosta de assustar caçadores. Da mesma forma que a Comadre Florzinha, ele protege os animais selvagens, embora mexa bastante com os animais domésticos a fim de azucrinar a vida de quem se muda para o campo, ameaçando a natureza. Pelo olho que assusta e pela proteção das matas, apresenta semelhanças com Boitatá. Na selva amazônica pode ser confundido com o Mapinguari, ao assombrar caçadores e cortadores de madeira. Nos depoimentos colhidos por Monteiro Lobato, o Saci chega a aparecer com características do Boto: ´Há o saci caseiro, tentador das moças, chamado taterê (…) entra na água sem se molhar´. 

Na voz de um caçador profissional o Saci assume os atributos de guardião das florestas atribuídos ao Curupira: ´Vi [o Saci] num secular toco de peroba, que as queimas periódicas não tinham conseguido destruir, um molecote preto, de beiços vermelhos como açafrão, de cócoras, a rir perdidamente´. Há relatos em que o saci aparece com o calcanhar para frente de modo que suas pegadas indiquem direção contrária ao seu caminhar. São comuns também os causos de saci aumentando os ventos para prejudicar a ação das queimadas, estendendo o fogo aos cafezais e canaviais. 

O mito ecológico do Saci está presente em muitos causos do livro ´O Sacy Pererê – Resultado de um Inquérito´ (1918). A fala de um morador da cidade de São Paulo sobre a mata onde hoje são os chamados jardins, conta que na boca da noite o Saci saia procurando os meninos que caçavam passarinho e destruíam seus ninhos. O relato testemunha que quando esses meninos viam o Saci corriam deixando para trás gaiolas e alçapões. ´Em Minas há um [Saci] muito reinador que atenta os garimpeiros´, cientifica um depoente. Quando se trata dos espantalhos da noite no Brasil, ´o Sacy é o coração que alimenta três artérias: o lobisomem, a mula-sem-cabeça e a bruxa´, conclui um outro. 

O relato de um cearense explica que no Ceará alguns atributos do saci, tais como as travessuras nos galinheiros e nos currais, coincidem com as do caipora. Ele diz que os dois são assustadores e esclarece que nos lugares de predominância indígena o caipora usa uma carapuça encarnada (que era como se chamava a cor vermelha no Ceará em tempos passados) feita de urupemba, um tipo de peneira vegetal utilizada na cozinha, e anda montado num porco do mato conhecido como caititu. 

A história de um casal cego que pedia esmolas nas ruas de Caçapava, São Paulo, descreve bem o vínculo do Saci com a preservação ambiental. Marido e mulher haviam conseguido fazer uma derrubada de árvores, apesar da ação do Saci que as regeneravam. Descobriram que aquele pedaço de terra era enfeitiçado pela presença do Saci, para o qual a sombra das árvores eram necessárias. Resumindo, eles conseguiram se livrar da cabacinha onde o Saci guardava seu feitiço e desmataram tudo. Tempos depois, numa cena digna de Edgard Allan Poe (1809 – 1849), não suportando a curiosidade, os dois resolveram desenterrar a cabacinha para ver o que tinha dentro. Ao quebrá-la, foram atacados por marimbondo venenosos que os picaram até que ficassem cegos. 
No ´inquérito´ lobatiano um leitor conclui que ´as proezas do sacy, a sua malignidade e esperteza, o seu riso e a sua diabrura, são actos inesperados da natureza brasileira, ironia da sua grandeza´. Diante da exaustão dos recursos naturais do planeta e do esgotamento das relações entre as pessoas, o Saci aparece como o mito dos ventos contrários, o apaixonado pela inexistente flor da samambaia e um anti-herói dos tempos atuais. O Saci está solto e felizmente sabemos do que ele é capaz.