Portal Visto Livre, 11/12/2007

Postado por Leisa Ribeiro 

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Visto Livre: Quando você decidiu escrever cantigas infantis, e por quê?
Flávio Paiva: Todos os meus trabalhos, independentemente de serem para adultos ou crianças, têm um quê de credulidade na vida, nas pessoas, na imensidão… A primeira música que fiz deliberadamente para uma situação de infância foi “Cantiga de Bárbara, a Borboleta”, uma parceria com o meu amigo e também jornalista João Monteiro Vasconcelos. Esta música foi feita para ser dada de presente a Patrícia, uma amiga nossa de faculdade que, em 1991, teve filhos gêmeos. Lembro que telefonei para a Bia Bedran em Niterói e pedi a ela para gravar o nosso presente. Ela generosamente gravou e ficou lindo, como são lindas as músicas que ela compõe e canta.

Visto Livre: E o seu processo de composição, como é?
Flávio Paiva: Faço música como os artistas populares fazem temas em argila. Cada composição minha tem uma história para contar. Muitas delas ficam tempos e tempos em processo de memorização, sem qualquer registro formal. Sempre tive preguiça de aprender a tocar um instrumento, embora tenha estudado um pouco para ter noção. Houve um tempo, quando participei de um coral formado pelo neocastrati Paulo Abel do Nascimento, em que eu conseguia solfejar com uma certa desenvoltura. Mas foi a professora Niède D’Aquino que me confortou ao me dar de presente o seu livro “Você é a Música”, a partir do qual comecei a perceber claramente que para ser compositor não precisava necessariamente de nada disso. Depois vi o Hermeto Paschoal dizer que não se estuda música, pois a música está no ser humano, o que se estuda é teoria musical. Tomei coragem e resolvi seguir a liberdade da Dona Ivone Lara, do João do Vale e toda essa gente maravilhosa que criou tantas obras geniais sem tocar qualquer instrumento convencional. Assim, faço música simultaneamente com a letra, passo letra para parceiro musicar, ponho letra em música de outros, faço ao mesmo tempo letra e música em parceria… Não há fórmula nem obrigação.

Visto Livre: Como foi a concepção de Bamba-la-lão ?
Flávio Paiva: O Bamba-la-lão é meu segundo CD infantil. Em 1999, quando nasceu o meu primeiro filho Lucas, fiz o CD Samba-le-lê de presente para ele. Levei uma cópia da matriz para a maternidade e ele nasceu ouvindo as músicas que tinham sido compostas exclusivamente como expressão de acolhimento à chegada dele ao mundo, dentre as quais, há faixa cujo título é “Lucas”. Daí, em 2001, foi à vez do Artur nascer. Produzi também um CD para ele e, como não poderia ser diferente, com uma música de boas-vindas intitulada “Artur”. Surgiu o Bamba-la-lão , para o qual contei com a participação do Lucas, que ainda nem tinha dois anos no período de gravação, mas cantou um trecho incidental da música “Se essa rua fosse minha” em homenagem ao irmão.

Visto Livre: No CD tem a participação de várias crianças, como elas reagem às canções do álbum?
Flávio Paiva: Todas as crianças que participam do coro infantil são filhas e filhos de amigos nossos. Elas tinham participado também das gravações do Samba-le-lê e amado a experiência. Convidei o maestro Erwin Schrader para fazer uma preparação das crianças e conduzí-las nas gravações dos dois CDs. Ele é muito bom e conseguiu fazer um trabalho solto, alegre, integrado e de feliz resultado. E veja que essas crianças estudavam em escolas diferentes e moravam em bairros diferentes de Fortaleza. Muitas delas sequer se conheciam. Ficou um coro infantil com ar de brincadeira de rua, de encontro da meninada para brincar de cantar.

Visto Livre: No release do CD diz que você não apela pelo politicamente correto, o que quer dizer com isso?
Flávio Paiva: Acho a aplicação do politicamente correto na arte uma limitante da criação e um desserviço à educação. Quando alguém canta “Não atire o pau no gato” está tirando a possibilidade pedagógica da criança reagir, da criança se pronunciar em defesa dos animais. A alteração feita em “Escravos de Jó” para “Amigos de Jó” rompe com a oportunidade de um diálogo sobre a escravidão. Evidente que o autor de obras destinadas à infância deve ter responsabilidade para não abusar do processo de discernimento infantil diante dos aspectos da realidade que podem induzir as meninas e os meninos a deformações sociais e culturais, do tipo erotização precoce e escatologias.

Visto Livre: Foi você que escolheu a Olga Ribeiro para por voz em suas cantigas?
Flávio Paiva: Foi, sim, com muito orgulho. A Olga é uma grande cantora, além de uma amiga do coração. Em 1992 produzi um LP, que também saiu em fita k-7, intitulado América , todo cantado por ela, com a participação do compositor cubano Juan Carlos Péres, dentro das manifestações críticas aos 500 anos do nosso continente. Quando fiz o meu primeiro CD, Rolimã , em 1994, pelo selo Camerati do Cláudio Lucci, ela foi convidada a interpretar uma das faixas. Em 1997, produzi, com ajuda da Mona Gadêlha, o CD Pão e Poesia , todo interpretado pela Olga Ribeiro. Quer dizer, convidá-la para gravar os dois CDs de saudação ao nascimento dos meus filhos foi uma decorrência natural da nossa relação artística e de amizade.

Visto Livre: Bamba-la-lão teve o resultado esperado?
Flávio Paiva: – Sim. Tanto o Samba-le-lê quanto o Bamba-la-lão são discos orgânicos, que floresceram naturalmente no campo fértil do que costumo chamar de paternidade criadora.

Visto Livre: Então você testa suas canções com seus filhos?
Flávio Paiva: O Lucas e o Artur são meus companheiros nessa brincadeira toda. Sem eles, nada disso existiria.

Visto Livre: Falta cantigas infantis no mercado fonográfico ou falta quem invista nelas?
Flávio Paiva: Desde a coleção Disquinho coordenada pelo saudoso Braguinha, passando pelas canções feitas para crianças por Vinícius, Toquinho, Chico Buarque, Bia Bedran e, mais recentemente, pelo grupo Palavra Cantada, de Luiz Tatit e Sandra Perez, a MPB infantil tem demonstrado muita qualidade inventiva. As canções para meninas e meninos fazem parte da força criativa da música plural brasileira, mas, da mesma forma que a boa música para adultos, via de regra, permanece escanteada pela força de um mercado neoliberal perverso e pela omissão das políticas públicas de cultura.

Visto Livre: Você vê diferença entre o gosto musical das crianças da atualidade para as de algumas décadas atrás?
Flávio Paiva: Não vejo essas diferenças como questão de gosto, mas de oportunidade, já que as fontes de informação multiplicam-se a cada dia. Independente de época, em situação normal, toda criança prefere testar suas hipóteses no mundo da imaginação.

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