Diário do Nordeste – Coluna Batista de Lima, Fortaleza, CE, terça-feira, 13/3/2007
Batista de Lima
A última Bienal do Livro, em Fortaleza (2006), mostrou que o Centro de Convenções está ficando insuficiente para o evento. Que talvez a idéia seja, nas próximas edições, localizá-la em outro logradouro, ou, ficando onde está, ampliá-la com a utilização de alguns espaços da Universidade de Fortaleza, que lhe fica ao lado. Além dessa constatação, o que tirou o evento da mesmice que marca essas feiras foi a ênfase na procura do cordel e da literatura infantil. Também chamaram a atenção as palestras em torno de autores e obras selecionados para o Vestibular.
Passada a feira, feitas as avaliações, o escritor Flávio Paiva apresentou, neste jornal, (02/10/2006), uma lista de 12 livros infantis propícios para presente no Dia da Criança. A relação apresentava livros nacionais e estrangeiros mas deixava de mencionar, talvez por modéstia, o seu próprio livro Benedito Bacurau, o pássaro que não nasceu de um ovo. São 55 páginas de histórias envolvendo o Benedito, tão bem urdidas que servem para crianças e adultos. Ilustrado com aquarelas de Estrigas e editado luxuosamente pela Cortez Editora, o volume ainda traz um CD com narração e ilustração de Antônio Nóbrega.
A apresentação é de Rubem Alves, escritor de muitos livros na área da reflexão pedagógica. Nessa apresentação, o famoso pedagogo faz uma distinção muito bem feita entre o apolíneo e o dionisíaco da linguagem: ´Das palavras que marcham, nascem a ciência e a filosofia. Das palavras que dançam, nasce a poesia´. Também outro achado de Rubem Alves, na apresentação, ocorre quando ele fala sobre a metáfora: ´As metáforas nascem da fraternidade que existe entre todas as coisas´. E termina por concluir numa tirada bem roseana de que: ´As coisas que não existem são mais poderosas´. Essas reflexões põem o leitor de oitiva diante do manancial literário que está por vir.
A primeira narrativa é ´A corujinha do oco do pau´, onde o autor já revela: ´Minha mãe tinha o hábito de me colocar para dormir cantarolando uns versos que falavam de um prodigioso Benedito Bacurau´. Isso já nos leva à conclusão de que o narrador um dia foi privilegiado ouvinte de histórias infantis para hoje se tornar exímio na escritura. Essa primeira história termina com uma conclusão bem conceitual: ´antes de entender é preciso imaginar´. Na seguinte narrativa, o autor consegue, ao contar história para o filho Lucas, que chama o momento de ´brincar de brincadeira´, saltar do real para o maravilhoso, na narrativa, quando Benedito Bacurau aparece na sala e começa a fazer malabarismos.
Flávio Paiva além de contar histórias infantis consegue enxertá-las de passagens e logradouros históricos de Fortaleza. Em ´O coreto encantado´, por exemplo, ele nos remete à Praça do Ferreira e apresenta a coluna da hora, o velho cacimbão recuperado na última mudança estrutural da praça, que tornou-se um espaço pós-moderno. Fala no Cajueiro Botador que ali existiu em tempos idos, fala nos bondes, no Abrigo Central e na azáfama que ali se desenvolvia, intercalada por modinhas, poemas, discursos, comícios, passeatas, vaias, anedotas e o berro do bode Ioiô. Mas o importante é a reconstrução, na escritura, do belo coreto que ali existiu e que fora substituído pela Coluna da Hora.
Essa reconstrução não se limita a monumentos históricos da nossa cultura, ela vai também a uma recontagem de lendas, canções e folguedos que empolgaram crianças dantanho. É o caso de: ´cabra cega, berlinda, corrida do ovo na colher, imitações de animais, cabo de guerra, carimba, passa o anel, pula-saci, telefone sem fio, tampa de garrafa, palitinho, paus-de-sebo, paus-de-fita, par-ou-ímpar, zerinho-ou-um, bolhas de sabão, a palavra é…, enfim, jogos, trava-línguas, parlendas…´. Essa forma de recontar, quando em contos, chama-se raconto. E é aí onde entra a mestria de Flávio Paiva nessa garimpagem e posterior burilamento das jóias de nossa literatura oral, para a garotada.
Mas não fica o autor nessa recontagem. É importante observar sua criatividade, quando imagens saltam da sua escritura para o nosso cismar. Em ´O lado claro da Terra´, ele observa a terra olhando da lua para cá. É aí que ele e Lucas descobrem o lado lua da terra, a claridade lírica do nosso planeta, numa iluminação ´bacuralesca´. Diante dessa epifania, tudo que Lucas diz, sai para virar música.
Essas criações inusitadas vão perpassando o texto e se aninhando em cenários mágicos como é o caso de ´O segredo da casa gigante´. Ali é ´um lugar onde não somos visita, um lugar para voltar, um lugar onde as semelhanças nos aproximam sem precisarmos viajar´. Nesse ambiente do devaneio ele conclui que ´um país é feito dos desejos de felicidade que associamos ao lugar que nos acolhe no mundo´.
Esse tipo de reflexão faz com que o livro infantil seja apropriado também para os adultos. Esse é o grande valor desse tipo de literatura: é que ela é feita para todas as idades. Os adultos se vêem diante daquele mundo que um dia existiu lá fora porque aqui dentro do peito ele continua latente. É por isso que a certa altura do livro o autor revela, diante das brincadeiras que desempenha junto com o filho: ´eu tinha um bacurau solto dentro de mim´.
Esse livro de Flávio Paiva está bonito na sua apresentação entremeada pelas ilustrações de Estrigas e no final um CD com a narração, os contos e os instrumentos de Antônio Nóbrega que, ao lado de um grupo de artistas, criou outra dimensão para a obra, além da escrita. A Cortez Editora e o apoio do Banco do Nordeste possibilitaram a publicação luxuosa do livro e do CD que são um convite para a leitura, principalmente para crianças, esses pequeninos em quem temos que provocar fome de ler. O resto virá por acréscimo.