Jornal O POVO, Vida & Arte, Fortaleza, 10/11/1998
FAC-SÍMILE
Lançado hoje, o videoclipe da música Xote para Sêneca ,de Flávio Paiva, tem um perfil documental e aposta na espontaneidade dos moradores do bairro Serviluz para exaltar os valores culturais do Estado.
Do ruge-ruge de ambulantes e pregadores do centro de Fortaleza para a sinuosa e preterida Praia do Titanzinho. Ali, à beira-mar, um festivo grupo de meia-idade forma pares e dança colado, tendo como pano de fundo os casebres que emolduram o Farol do Mucuripe. É o aperto do dia-a-dia recrudescendo frente à simples e contagiante alegria de viver do povo do lugar. Lançado hoje, na sede da Associação dos Moradores do Serviluz, o videoclipe da música Xote para Sêneca, de Flávio Paiva, nega estereótipos de cartões-postais e faz um elogio aos valores imateriais da cidade. “Pela própria simplicidade, essas imagens colocam em xeque a postura de uma elite concentradora de renda que no fundo é infeliz porque só pensa em poder e fecha os olhos para as coisas do espírito”,provoca o autor.
O xote de Flávio mora na Filosofia. Foi a partir da leitura de um ensaio escrito por Sêneca, “filósofo espanhol culturalmente romano”, que ele decidiu falar sobre contrastes do mundo material e exaltar os conteúdos culturais. Assinado pela dupla Karla Holanda e Otávio Pedro, o trabalho de direção soube valorizar a mensagem: em nome da espontaneidade, os participantes do clipe saíram da própria comunidade do Serviluz, o que confere um perfil documental ao trabalho. “Quando fomos ao bairro para selecionar as pessoas que iriam dançar queríamos gente de todas as faixas etárias. Mas a simplicidade e alegria dos mais velhos parecia casar perfeitamente com a letra da música, que fala em deleite à beira-mar, sabedoria de viver e é uma crítica ao jogo das aparências”, destacou Karla.
Na mosca. Dispensando ensaios, os dançarinos acertaram o passo em uma única manhã. “Pra nós foi uma grande riqueza, viu? Comparo assim como quando uma jóia está perdida e de repente a gente encontra. Faz 12 anos que nós trabalhamos com esse grupo de idosos aqui e nunca a gente havia sido reconhecido. Eles são uns artistas, viu? Dançam quadrilha, fazem o carnaval deles, se reúnem todas as segundas-feiras, quero que tu veja!”, anima-se dona Mariazinha, presidente da Associação de Moradores do Serviluz. Toda prosa, ela aproveita a noite de lançamento do clipe para anunciar outras atrações: uma segunda coreografia para o xote, criada pelas crianças do bairro, e uma peça de teatro que fala sobre drogas. Por fim, tem forró na quadra da associação.
Autora de documentários sobre Rachel de Queiroz, Pedro Nava, Aníbal Machado e Antônio Carlos Vilaça, entre outros, a diretora do videoclipe de Xote para Sêneca gostou da estréia no gênero. E vibra com o inusitado do lançamento. “Lançar o clipe no Serviluz não só foge ao convencional como soa mais verdadeiro. Além disso, pode ser que a gente consiga atrair o olhar das pessoas para um lugar que muitas vezes nos passa despercebido, embora esteja tão perto”, acredita. Assinando em baixo, a presidente da Associação dos Moradores reforça: “Pra criar as coisas a gente só precisa de apoio, viu? As autoridades vão ver que os velhos não tão mortos, muito pelo contrário. E olhe que eles só contam com a ajuda de Deus”.
Gravada originalmente no CD Terra do Nunca (1997), de Flávio Paiva, a música Xote para Sênecatambém integra a coletânea Terra, Trabalho e Cotidiano, produzida pela Central Única dos Trabalhadores (CUT-CE). O videoclipe homônimo já não deixa a dever: foi vencedor do Prêmio Dragão do Mar de Cinema e Vídeo 98.