“O Brasil tem uma força musical renovadora”

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FAC-SÍMILE

Nesta entrevista, Flávio Paiva expõe a razão de ter optado pelo pop em seu novo disco e joga um olhar otimista sobre o atual momento da música brasileira.

Diário – Você não canta nem é músico e no entanto já está lançando um segundo disco. Como explicar essa relação? 

Flávio Paiva – A música faz parte das pessoas e pode ser exercitada de muitas maneiras. Certa vez, e isso já tem mais de 20 anos, ganhei um livro de uma amiga do Paraná chamada Niede d’Aquino, cujo título é “Você é a Música”. Este livro foi muito importante na minha decisão de aceitar o envolvimento com o mundo musical sem cobranças de ter que cantar ou tocar um instrumento. A voz ou o violão, por exemplo, são como o próprio nome diz instrumentos para a execução das nossas expressões sonoras. Na verdade, nunca fui muito apegado à disciplina necessária para aprender a tocar um instrumento. Estudei violão e cantei em coral. Foram exercícios dispersos que acabaram servindo para uma melhor compreensão desse universo. Minha relação com compositores e intérpretes flui naturalmente para parcerias, algumas vezes como letrista musicado, outras colocando letra em melodias que me agradam e, mais raramente, dividindo com o parceiro o momento da criação lítero-musical. Acontece também de certas letras já sugerirem com uma musicalidade bem própria e, nestes casos, acabo compondo também a melodia. 

– Em 1992 você produziu, em parceria com a cantora Olga Ribeiro, o LP “América” e dois anos depois fez o CD “Rolimã”, seu primeiro trabalho como autor. Em ambos, os arranjadores, músicos e intérpretes são cearenses. Por que agora, você optou em fazer o “Terra do Nunca” com gente de fora do Ceará? 

Flávio Paiva – Há tempos eu vinha com um comichão meio esquisito para fazer um trabalho com referências migrantes e urbanas. Quando há três anos, na ilha de São Luís, o compositor Josias Sobrinho (“Engenho de Flores”) me aproximou da cantora Anna Torres, senti imediatamente um magnetismo estético incomum. Ela é uma cantora muito especial. Daí, espontaneamente passamos a trocar idéias, a compor e a projetar um trabalho conjunto. Já com o Paulo Lepetit foi um pouco diferente, embora com a mesma intensidade. Eu já conhecia o trabalho do Paulinho como baixista a banda do Itamar Assumpção e um pouco da sua produção individual que o Luís Calanca, da Baratos Afins, tinha me mostrado. Quando ouvi o disco da Vange Milliet, que ele fez a produção musical, pensei comigo: “Este é o cara!”. Pouco depois saiu o CD do Itamar cantando Ataulfo Alves (“Para Sempre Agora”) e reforçou bastante minha intenção. Mas foi em uma conversa com a Mona Gadêlha, produtora executiva do “Terra do Nunca”, que concluímos ser ele a peça que faltava. Portanto, o fato de compartilhar o disco com uma intérprete e um produtor musical de outros estados, não tem qualquer ligação com juízo de valor relativo à qualidade técnica ou artística regional. A prova disso é a própria qualidade do “América” e do “Rolimã”, que, salvo uma ou outra exceção, foram arranjados e gravados por instrumentistas e intérpretes locais. Outro bom exemplo que encerra qualquer discussão nesse sentido é o CD da Kátia Freitas. Prefiro defender a liberdade sensitiva e profissional do artista do que ficar atrelado a limitações bairristas. Essa é uma possibilidade que a Lei Estadual de Incentivo à Cultura dá e que devemos segurar com determinação. Não devemos cair na conversa tacanha dos incomodados com a produção competitiva que tem surgido no Ceará. Para mim esse livre arbítrio é estratégico, arejador e indispensável a pontecialização do autor cearense. Se o Jorge do Bandolim, optou por gravar no Rio de Janeiro, o Marcus Britto escolheu São Paulo, o Cristiano Pinho, o Abidoral Jamacaru, o Edmar Gonçalves e o David Duarte preferiram Fortaleza, ou se o Ricardo Black está ou não gravando na Suíça, não importa. Para mim, o que está em jogo e o que mais me deixa feliz é sentir esses sons gerando um ambiente cada vez mais fértil e cheio de valores visíveis como há muito não tínhamos o prazer de escutar e apostar. 

– É isso que no texto de apresentação do “Terra do Nunca” você chama de processo de “transfiguração da nossa Música Plural Brasileira”? 

Flávio Paiva – É isso mesmo. O Brasil tem uma força musical renovadora quase impossível de ser mensurada, embora os canais de difusão dessa riqueza insistam em reduzir esse potencial a supostas tendências de estação. A expressão “Música Popular Brasileira” tornou-se um gênero tradicional que não traduz a diversidade existente no País. Por isso procurei contribuir para a atualização do conceito, preservando as iniciais MPB, por reverência e reconhecimento à heráldica da coisa. Então, tenho utilizado e provocado que outras pessoas, também comprometidas com essa diversidade, passem a falar de “Música Plural Brasileira”. Inicialmente cheguei a difundir a expressão “Música Contemporânea Nacional”, mas logo percebi que muita gente tem chamado de música contemporânea apenas o que se produz em viés experimental.Todos esses segmentos são peças do nosso grande leque de musicalidade mestiça e têm muita importância para o país, quer estejam na alma em brasa do movimento funk, que se alastra a partir da periferia, ou na sofisticação harmônica da bossa-nova, originada no seio da nata social carioca. 

– Em seus textos jornalísticos você sempre recorreu a arquétipos para chegar ao leitor. Nota-se que esta característica também está presente em sues trabalhos com música. Por que a escolha desse caminho? 

Flávio Paiva – Percebo essa tendência mas não a entendo exatamente como uma opção. Esta é uma questão que atribuo mais à intuição do que à razão ou qualquer fundamento teórico. A metamorfose da lâmpada elétrica em lamparina, que criei para chancelar visualmente o “Terra do Nunca”, é fruto da simbologia que na minha infância envolvia o ato de brincar com fogo. É a presença constante de Lutin, o elemental do fogo, mantendo aceso nosso espírito ardente. Sair de lamparina em punho para enfrentar os becos escuros de uma cultura urbana indefinida e provinciana é meio confuciano até. Mas clareando ou encadeando sempre acho que vale a pena arriscar saídas. 

– Como você pretende fazer o lançamento do “Terra do Nunca”?

Flávio Paiva – Serão três shows em Fortaleza e um em Canoa Quebrada , encerrando a turnê de lançamento. Todos com a energia vibrante da Anna Torres e o suíngue maneiro da banda de Paulo Lepetit, que gravou o disco. Contaremos ainda com a participação especial do Bocato, o mais virtuoso dos trombonistas brasileiros, e, na apresentação em Canoa, teremos a presença marcante da promissoríssima cantora paulistana Vange Milliet.