O oráculo de Juazeiro
Jornal O Povo, Caderno Vida & Arte, 23/12/2001

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No guia de endereçamento postal brasileiro é surpreendente a quantidade de vezes que aparece o nome do Padre Cícero. São 94 logradouros em 51 localidades de 20 estados. Estabelecimentos comerciais que fizeram dele promissoras marcas de fantasia tornaram-se incontáveis em todo o país. Bastante significativo também é o número de produtos que carregam sua grife entre vinhos e pomadas curativas. Ora como foco central, ora como pano de fundo, nem se conta a quantidade de artigos religiosos, temas em cerâmica, talhas, gravuras, bordados, pinturas populares, cordéis, livros, ensaios, biografias, filmes e músicas que, de forma dispersa, alimentam essa trama.

A fonte de onde emana toda essa mística tem endereço, nome e lugar definido no mapa do Ceará. Chama-se Juazeiro do Norte e, mais dia menos dia, acabará sendo chamada de Juazeiro do Padre Cícero. Ele inventou aquele lugar e ali juntou todo o ethos nordestino para depois espalhar. Sua estátua no alto do Horto só falta mesmo é ser pintada com as cores originais para, como ele, fugir das convenções da perspectiva clássica. Os romeiros iriam delirar com aquele Padim Ciço enorme, dá mesma cor do que cada um preferencialmente gosta de adorar em casa.

Tomo a liberdade de dizer que a estatueta colorida é a preferida dos devotos do Padre Cícero um tanto por intuição, mas igualmente por ter feito algumas investigações nesse sentido. A mais contundente de todas foi certa vez quando alguns amigos e eu seguíamos de Quixadá para Fortaleza e, ao passar no girador da saída da cidade do monólitos, tomamos o rumo errado e acabamos nos encontrando em Ibicuitinga. Como a noite já estava mesmo perdida paramos em uma ponto meio mercearia, meio bodega, para beber, merendar e conversar apreciando o vento Aracati. Na parede, por trás do balcão, havia uma imagem do Padre Cícero, da cor do gesso. Perguntei à senhora que nos atendia, qual a razão dela ter naquele pequeno pedestal a estatueta branca. Ela respondeu que fora um presente. Voltei a indagar se ela fosse pessoalmente comprar uma estatueta daquelas, lá em Juazeiro, qual das duas ela compraria. E a senhora respondeu sem titubear: “Compraria a verdadeira, claro!”. Depois desse dia, fiquei mais convicto. E com testemunhas.

A imagem “verdadeira” do Padre Cícero guarda em seu todo a significação do Juazeiro e vice-versa. Ambos sintetizam esforços de vida e morte nas brenhas nordestinas. Como objeto, traduz à primeira vista uma pulsão civilizatória cujo conteúdo vigoroso é muito maior do que a discussão existente sobre o seu valor. Dentro da mistura de pureza com sagacidade e de ingenuidade com inspiração vital, do balaio cultural caririense, borbulha toda uma expressão popular em torno da imagem kitsch da estatueta de Cícero Romão. É o verde rosa no samba da Mangueira; a fragilidade anoréxica da boneca Barbie; o chapéu de fruteiras da Carmem Miranda e o pingüim de geladeira perambulando pelas nossas frestas de cores ácidas tinindo ao sol dos trópicos.

Nos inumeráveis oratórios dos lares nordestinos, a estatueta do Padre Cícero confunde-se nas fragrâncias dos bailes perfumados. O perfume das pétalas incensam devoções. Aromatizar oratórios é um jeito popular de fazer oferendas aos santos. Vidros e mais vidros de perfume decoram funcionalmente esses nichos de adoração. Água de rosas, seiva de alfazema, lavanda… hum, que cheirinho de nordestinidade! No livro Brasilessência, no qual Renata Ashcar faz uma pequena história do perfume no mundo, existe um bom destaque para a influência da religiosidade na perfumaria brasileira. Nas ilustrações, frascos que homenageiam Iemanjá e o Padre Cícero.

Na condição de oráculo, consolidado por manifestações espontâneas de fé, Juazeiro do Padre Cícero está para o Ceará como Delfos estava para a Grécia Antiga. Cada qual com suas histórias de cabras e secas prolongadas. Na antiguidade, a formação dos governos cristãos proibiu a busca de respostas divinas nos oráculos gregos, da mesma forma que o papa Leão XIII excomungou o “Padim Pade Ciço”, no final do Século XIX. Em Delfos, o Deus Apolo tornou-se mitológico a partir de fenômenos geológicos e do estado de transe que o gás etileno provocava em uma sacerdotisa chamada Pítia. Em Juazeiro, Padre Cícero ganhou a fama de taumaturgo por conta do êxtase de uma beata chamada Maria de Araújo, em cuja boca a hóstia teria virado sangue em repetidas comunhões.

O templo de Apolo foi destruído por abalos sísmicos e o oráculo de Juazeiro sofre o tremor das nossas reticências culturais. O Ceará, o Nordeste e o Brasil têm um mito feito em casa, com local e data de nascimento e morte (Crato 1844 – Juazeiro 1934). Um mito que move milhões de pessoas na simbiose da crença com a política e o comércio da fé. O oráculo de Juazeiro é todo um conjunto de indutores de concentração de devotos, penitentes e artistas populares. Está no entorno da estátua de Cícero, na Casa dos Milagres, no museu, no memorial, no Centro de Romaria, nas tantas ruas com nomes de santos, no coração dos romeiros e no vasto espectro de expressões que levam consigo pelo mundo afora. Resiste na memória cultuada pelo milagre do seu próprio eco, varando o tempo como um incrível tropeiro noticiando de cor a grandeza da esperança de uma gente que, mesmo sofrida, prefere apostar na vida do jeito que pode.