A herança do Pe. Cícero
Jornal O Povo, Caderno Vida & Arte, 09/12/2001

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Pode até parecer devaneio de algum sonho errante, mas felizmente é verdade a existência de mobilizações em favor do registro oficial de bens imateriais genuinamente brasileiros. Inicia-se portanto o aprendizado da auto-descoberta do país. O Decreto 3551, assinado em agosto passado pelo ministro Francisco Weffort e pelo presidente Fernando Henrique, institui a autenticação do nosso patrimônio intangível, e já desencadeia os primeiros efeitos de um longo processo composto de percepção e empenho dos que acreditam na força e na importância dos valores culturais do Brasil.

Os projetos focados nessa riqueza e destinados ao tombamento, por parte do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, IPHAN, começam a surgir e a empolgar pela dimensão espiritual dos seus significados. As badaladas dos sinos de São João del Rey, o queijo mineiro, as panelas de barro das moquecas capixabas e a expressão religiosa paraense do Círio de Nazaré, constituem os bens prestes a inaugurar os livros de registros dos tesouros da brasilidade. Cada candidato deve ser patrocinado por seu respectivo Estado, sem necessariamente depender dos órgãos oficiais para isso. A provocação para a instauração do processo pode ser feita através de sociedades e associações civis.

A efervescência cultural deixada pelo Padre Cícero, a partir dos grotões caririenses, é o maior e mais consistente bem intangível do patrimônio imaterial cearense. Bem que se poderia tentar esse reconhecimento formal. Além de fazer justiça a um fenômeno social e cultural sem paralelo no Brasil, o tombamento do mito dos romeiros nordestinos resultaria em grande avanço para melhor aproveitamento do seu potencial de catálise. O registro no IPHAN tem como referência a “continuidade histórica do bem e sua relevância nacional para a memória, a identidade e a formação da sociedade brasileira”. Mais adequado, impossível.

A classificação dos bens simbólicos conta inicialmente com quatro livros de registros: o Livro dos Saberes, o Livro das Celebrações, o Livro das Formas de Expressão e o Livros dos Lugares. Entre contradições religiosas, controvérsias políticas e muito conteúdo de geografia humana, o legado imaterial do Padre Cícero tem essência para todos eles. A ambiência cultural da sua obra possibilitou desde a proliferação da estética de visão fantástica, retratada na literatura de cordel, à ética severa e honrosa da fé, patenteada nos ex-votos. Um mundo de respostas e indagações, misturado na golda do sentido da morte no cangaço e na evocação por verdes algarobais em plena caatinga. Tombar o “Padim Ciço Romão” é jogar luz nos “modos de fazer”, nas maneiras de se manifestar e nos “espaços onde se concentram e reproduzem práticas culturais coletivas” da gente nordestina.

Como o Decreto Federal prevê a abertura de outros livros para a inscrição de bens imateriais do patrimônio cultural brasileiro, que não se enquadrem nos livros já definidos, não custaria nada propor a abertura de um Livro das Personalidades Mitificadas, no qual seria assinalado o nome do Padre Cícero Romão Batista (1844 – 1934). Esse livro poderia estabelecer, nos seus critérios de seleção, um período mínimo de cinqüenta anos post mortem, como teste de resistência de conceito na cultura popular. No futuro, quem sabe, poderiam estar em suas páginas de Luiz Gonzaga a Pelé.

A grandeza intocável do Padre Cícero e os benefícios da compreensão do seu valor, como ícone de uma gente, podem influenciar significativamente o desenvolvimento do Ceará. Imagem por imagem o seu conceito é bem constituído e cheio de razões viscerais para ser trabalhado estrategicamente. Ações como a revisão do processo de canonização do Padre Cícero, que está em curso no leito moral da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, CNBB, são exemplares, mas muito aquém do que o mito merece. A questão do Padre Cícero não pode ser resumida a uma pendenga com a Igreja, ela faz parte da hagiografia de uma nação que precisa se encontrar em suas expressões mais originais.

Padre Cícero é filho do Brasil de dentro e fez do Cariri o pêndulo da mais autêntica cultura popular nordestina. Agitou meio mundo e assombrou o Vaticano. Pelo tamanho da catálise que provocou, celebrizou-se tempo afora e, quase sete décadas depois da sua morte, foi eleito o Cearense do Século, numa promoção da Rede Globo de televisão, através do Sistema Verde Mares. A vitalidade do Padre Cícero continua interferindo no cotidiano das pessoas que o veneram por motivos históricos, culturais, políticos e religiosos. Atributos que fazem dele um bem imaterial fundador do Brasil.