Eleições no Ceará. Hegemonia
Carta Maior – Análise & Opinião, 06/10/2010
Em um lugar como o Ceará, que tem um enorme passivo estrutural e grandes sonhos a serem tornados realidade, não dá para ficar mais pensando pequeno. O que as urnas revelaram é que o eleitor aceitou a experiência de convergência liderada pelo governador Cid Gomes.
Flávio Paiva
A nova configuração política instalada no Ceará com a retirada de Tasso Jereissati, derrotado em sua tentativa de reeleição ao Senado, e com a confirmação de Cid Gomes, expressivamente reeleito governador em primeiro turno, mais do que reduzida a uma situação de hegemonia, precisa ser interpretada como construção de uma convergência de diferentes correntes políticas em favor de um determinado projeto para o Estado e para o País.
A elevação de Cid ao patamar de principal liderança política do estado quebra a inércia de uma desconfortável falta de clareza nas relações políticas que, nas últimas décadas, vinham determinando por parte de poucos o destino de muitos. Abre-se, com as urnas de três de outubro passado, um novo capítulo a ser escrito na história cearense; um capítulo de acesso à nova curva de possibilidades para a potencialização da conjunção das forças vitoriosas.
O que para alguns pode parecer hegemonia, para outros é possível ser lido como convergência de vetores, porque faz parte de um processo político, de cunho econômico e social, que pode levar a relações de poder fundadas na autoridade partilhada. O que está em questão é muito mais do que a formação de um bloco de afinidades, mas a formação de um pensamento voltado para uma mudança que sai de uma posição anterior de dependência para uma posição de mais autonomia e proatividade.
A complexidade do mundo contemporâneo não recomenda que desperdicemos oportunidades de sinergias dos nossos motores da vida social. Pensar em convergência é pensar a aproximação de forças diferentes com o mesmo propósito. A convergência maximiza a prática da ação política. O que está polarizado nem sempre pode ser considerado democrático. A lógica da polarização está sempre querendo se opor à lógica da hegemonia. Não é bem assim. Há momentos que a convergência se dá pela descoberta de um regime comum de valores e de interações entre autônomos.
Pelo trabalho intenso e profícuo que o governo do Ceará vem desenvolvendo é natural uma coexistência de diferentes agentes políticos no mesmo espaço-tempo. Essa agregação de interesses foi enxergada pelo eleitor tanto como legitimidade do governante para continuar no cargo, como de concertação social. Ao abordarem essa situação de convergência como simples hegemonia, as contradições teóricas e as categorias analíticas dominantes deixam de contribuir para a necessária reinvenção da cultura política no Ceará.
Cada vez mais a sociedade toma consciência da riqueza existente na sua diversidade. Com isso, a partidarização extremada do poder, a procura pela solidão da ideologia única, já não têm mais sentido. As disputas provincianas do partido azul contra o partido vermelho viraram conversa de boi-bumbá. Para ter significado, a democracia deixou de ser apenas o governo da maioria para contemplar o respeito às minorias. Este é o novo senso comum sobre o qual parece estar montada a base de sustentação do governador Cid Gomes.
Com a construção dessa convergência, estão criadas as condições para a superação da dicotomia de simplesmente estar a favor ou contra. Uma nova realidade política está estabelecida no Ceará e essa nova realidade conta com o movimento de convergência de lideranças a fim de assegurar a estabilidade fundamental para o fazer acontecer. Todo governo precisa de maioria para governar, seja por meio de alianças estratégicas, coalizões, coligações eleitorais ou na tática da cooptação de bancadas passivas ou passíveis de se vender.
O que vinha acontecendo no Ceará era embaraçoso. A ambigüidade do PSDB com relação ao governo do PSB era paralisante. Enquanto houve a suposta chance de o governador Cid Gomes apoiar Tasso para a reeleição senatorial, todo o partido ficou à deriva. No momento em que as circunstâncias falaram mais alto do que os desejos e as expectativas pessoais do então chefe político se frustraram, o partido foi apresentado ao eleitor como oposição. O resultado não poderia ser diferente de uma falência múltipla dos órgãos vitais do tucanato cearense.
Pelo menos em duas ocasiões de intensa sensibilidade política, Cid demonstrou que não chegou aonde chegou para entrar nesse tipo de relação chove-não-molha. Manteve a palavra de apoio à reeleição da prefeita Luizianne Lins (2008), a despeito da candidatura da sua ex-cunhada Patrícia Gomes, e manteve o acordo com o presidente Lula, para a eleição de Eunício Oliveira e José Pimentel para as duas vagas do Ceará no Senado (2010). Seja como tenham sido as negociações, em ambos os casos o governador optou pela ruptura com o velho modelo da dubiedade, que vinha permeando essas relações.
Ao mudar de página o Ceará passa a contar com novas e expressivas lideranças nas mais variadas instâncias políticas. Nomes como o do recém-eleito senador José Pimentel, dos novos deputados federais Artur Bruno e João Ananias, e dos federais reeleitos Eudes Xavier, Chico Lopes e Ariosto Holanda passam a constituir blocos de referência em Brasília, enquanto os estaduais Camilo Santana, Nelson Martins, Professor Pinheiro, Mauro Filho e Ivo Gomes atuam na Assembleia Legislativa. Sem contar com o vice-governador eleito Domingos Filho e até com a oposição legítima e necessária de parlamentares como Heitor Férrer.
Cito alguns dos nossos políticos reconhecidos como sérios para ilustrar o quanto esse novo momento político cearense demonstra de estabilidade nas escalas das lideranças políticas. Não vejo como políticos desse nível de compromisso com seus eleitores e seus ideais possam servir a uma hegemonia. A consagração do governador Cid Gomes está exatamente na capacidade que ele demonstra ter de catalisar agregações individuais e coletivas, seja no plano político-partidário, seja no âmbito das relações econômicas, sociais e culturais.
Sabendo ou não que o Estado é um processo e não uma entidade ou uma empresa, o eleitor acaba por contribuir com a sua transformação ao exercer seus direitos de cidadania, como é o caso do voto. Faz bem ver que esses direitos já não são mais tão confiscáveis como em tempos atrás. Na minha coluna no Diário do Nordeste (“Para entender as pesquisas”, 29/07/2010), tomei as eleições para o Senado como exemplo da perversa interferência das pesquisas na percepção das intenções de voto. Mostrei que em agosto de 2002 o candidato Tasso Jereissati aparecia nas pesquisas com 75% das preferências e que na hora da apuração, as urnas só confirmaram 31%. No momento que publiquei esse comentário, Tasso aparecia com 59% (chegou a 63%) e eu questionei a insuflação do número. Abertas as urnas, ele tinha apenas 23%.
A agenda estadual de desenvolvimento precisa de convergência para se realizar na sua máxima extensão. O fato de existirem muitos atores dispostos a caminhar juntos, a arregaçar as mangas em busca de um destino comum não caracteriza hegemonia. Diferentemente de uma situação de convergência a hegemonia é caracterizada pela ausência de conflitos e pela eliminação dos embates entre interesses legítimos. Articular as vontades individuais e coletivas é uma tarefa sempre muito desafiadora. Entretanto é essencial que isso seja feito, simplesmente porque o desenvolvimento deve resultar dos desejos e da capacidade de construção da sociedade.
Em um lugar como o Ceará, que tem um enorme passivo estrutural e grandes sonhos a serem tornados realidade, não dá para ficar mais pensando pequeno. O que as urnas revelaram é que o eleitor aceitou a experiência de convergência liderada pelo governador Cid Gomes.
(*) Flávio Paiva é jornalista, colunista semanal do Diário do Nordeste e autor dentre outros, dos livros “Como Braços de Equilibristas” (Edições UFC), “Mobilização Social no Ceará – 16 anos de tentativas e 1 promessa de diálogo” (Edições Demócrito Rocha) e “Eu era assim – Infância Cultura de Consumismo” (Cortez Editora).