Diário do Nordeste, Caderno 3, Fortaleza, 28 de fevereiro de 1999

inclassificavel

FAC-SÍMILE

O jornalista, escritor e compositor Flávio Paiva faz 20 anos de uma diversificada produção alternativa, ganha seu nome na galeria de arte do Pilão da Madrugada e se prepara para lançar o terceiro CD autoral

Quem o conhece bem sabe que Flávio Paiva é escorregadio na hora de dizer o que pretende fazer. Sempre procura mostrar o que está pronto, terminado. Estimulado por uma trajetória de duas décadas de vivências no campo da produção alternativa, abre mão dessa prerrogativa e revela a intenção de lançar, até maio próximo, o CD “Samba-le-lê”, com seus cantos infantis, interpretados pela cantora Olga Ribeiro e direção musical de Tarcísio Sardinha. “São oito músicas inéditas, uma regravação e uma versão de “Lutin”, do compositor chileno Victor Jara”, antecipa. No próximo dia 20 de março completa 40 anos e aproveita a data para acompanhar in loco o lançamento paulistano do seu segundo CD Terra do Nunca, num show das cantoras Anna Torres e Vange Milliet, no Centro Cultural de São Paulo. Quanto ao fato de ter recebido uma galeria de arte com o seu nome, no Pilão da Madrugada (o mais novo point cultural de Fortaleza), diz que entra em festa com a alma de Nélson Cavaquinho, o saudoso compositor para quem as homenagens deveriam ser feitas em vida.

Defensor contundente da idéia de valorização de uma cultura mestiça e plural, fundamentada na compreensão de que é na “diversidade inventiva” onde descansa a maior riqueza do País, Flávio Paiva optou por caminhos pouco usuais na condução das suas crenças. “Sempre desconfiei do conceito de felicidade determinado pela lógica do consumo, do poder e da aparência. Vi que, por esses caminhos postiços, ser feliz é muito pouco. Desde cedo procurei querer mais. Percebi que, ressalvados alguns casos incomuns, as oportunidades somente estão postas para quem tem pedigree político, econômico ou acadêmico, o que nunca foi o meu caso. Então, para poder viver de forma mais intensa, procurei abraçar as oportunidades desse mundo quântico, focando mais ou menos minhas relações em alguns campos independentes e suas naturais interseções: amigos e familiares, atividade profissional e um terceiro, que é a zona franca de pensamento e produção autoral do sistema alternativo”.

Apesar da tentação artística persegui-lo desde a infância, em Independência, interior do Ceará, foi em 1979, já morando em Fortaleza, que Flávio Paiva sentou em grupo para discutir a questão da arte. Naquele momento estava sendo criada a Cooperativa de Escritores e Poetas, liderada pelo poeta Farias Frazão (1950-1982) autor do livro O Barulho do Silêncio. “Com essa idéia de cooperativismo viajamos, na época, por vários estados brasileiros, com a intenção de montar uma rede de autores independentes. Chegamos a ter uma banca de revistas na praça da Faculdade de Direito. Nosso sonho era um grande intercâmbio auto-sustentável. Falhamos no gerenciamento, que pretendiamos compartilhado”, explica. Tempos depois, viu finalmente vingar outro projeto coletivo que ajudou nos primeiros passos: a Oficina de Quadrinhos e Cartuns da UFC, conduzida pelo professor Geraldo Jesuíno, e que há mais de dez anos prepara crianças e adolescentes na técnica da chamada arte sequencial.

Para o autor de Retirantes na Apartação, arte é um substantivo não-governamental que também não combina com neoliberalismo. “É importante a participação promotora e reguladora do Estado e a existência consumidora do mercado, desde que haja condições de acesso da sociedade ao que se produz, para que as pessoas possam optar de forma menos induzida. Caso contrário, ambos são esteticamente perversos e o sucesso passa a ser medido por vendagens, horas de exposições pagas na mídia ou por premiações articuladas em bastidores muitas vezes pouco recomendáveis”, pondera Flávio Paiva, lembrando que o “processo de inteirização do planeta” exige concentração na comunidade, onde ainda são preservados os laços de reconhecimento do outro como semelhante.

O desenvolvimento local e a relação cultural comparativa com outras fontes, são condições indispensáveis para garantir a diferença como valor contemporâneo, na opinião de Flávio Paiva. Por isso, comenta, está sempre empenhado em manter suas “raízes e antenas” bem cuidadas. “Sou partidário da desconcentração dos palcos de Fortaleza. A cidade não pode ter apenas a Praia de Iracema como área de lazer cultural. Pode ser bom para algum turista efêmero ou para avarentos mercadores, mas é péssimo para o conjunto da população. Tenho lançado meus trabalhos preferencialmente fora desse pólo. Lancei o América, no Parque do Cocó; o Rolimã na sede da CDL; na turnê do Terra do Nunca, inclui o bairro da aerolândia, o Teatro José de Alencar e a praia de Canoa Quebrada; a revista Complexo B, foi lançada na AABB de Fortaleza e no Sebrae de Juazeiro do Norte; o Retirantes na Apartação, provocou um seminário sobre jornalismo e literatura na UFC e, mais recentemente, o videoclipe da música Xote para Sêneca, acabou em festa na Associação de Moradores do Serviluz”, recorda.

Mesmo como autor e co-autor de livros como o Gestão Compartilhada – o Pacto do Ceará, o Guia de Praias do Ceará ou A Face Viva da Ilusão, e produzindo jornais, revistas, videos, histórias em quadrinhos, colunas alternativas ou como jornalista de segundo caderno, ao longo de duas décadas Flávio Paiva tem influenciado diretamente a formação da nova geração da música no Ceará. Essa participação está refletida nas parcerias e nos agradecimentos expressos nas capas dos discos dos principais artistas cearenses produzidos nesse período. “Começamos a formar uma geração a partir do vértice zero, sem muitas referências construtivas, e acho que encerramos os anos 90 com um grande salto qualitativo. O show que fizemos no Parque do Cocó, unindo em um só palco as cantoras Karine Alexandrino, Kátia Freitas, Válerie Mesquita e Mona Gadêlha, por ocasião da festa de aniversário da revista em quadrinhos do Capitão Rapadura, foi um exemplo de fato revelador”.

Flávio Paiva contribuiu para a fermentação local animando pontes com artistas de outros estados brasileiros. Foi um dos primeiros jornalistas do país a assinar texto reconhecendo o talento, a consistência e sinalizando para a permanência de nomes como Adriana Calcanhotto e Chico César. Em um desses contatos, incentivou o violonista Cláudio Lucci, então dono do selo paulista Camerati, a fazer uma fábrica de CDs no Ceará. “Foi no restaurante do Faustino, na hora do irresistível sorvete de manjericão. O Cláudio tinha vindo a Fortaleza para o lançamento do Rolimã e ficou impressionado com o nosso ambiente musical. Quatro anos depois, temos aí a CDÁ, uma bela fábrica de discos na Caucaia, com tecnologia de ponta, coroando essa conquista”, diz com satisfação.

Como criador e coordenador do projeto Brahma Cultural, de 96 a 98, Flávio Paiva trabalhou o conceito de música plural brasileira, ampliando o circuito para a música local, com direito a convidados especiais de outros estados, em bares da cidade, a exemplo do Sexta com Arte, no Sindicato dos Jornalistas; do Aerocanta, no The Wall, das apresentações no Domínio Público e do histórico show da cantora Kátia Freitas na Biruta. “A marca Música Plural Brasileira foi disponibilizada para quem acredita na força da nossa diversidade criadora. O primeiro disco com essa chancela é o Saculeja, do baixista Paulo Lepetit, de São Paulo. A rádio FM 100 de Itapipoca colocou no ar um programa musical com esse nome e a cantora Marta Aurélia vai colocar no CD “Síntese” que pretende lançar ainda neste semestre”, conta.

Além do reconhecido zelo pela questão dos Direitos Autorais e pela qualidade artística e técnica das produções locais, Flávio Paiva tem inspirado o contexto de fortalecimento da importância da palavra na nossa música, ao lançar dois CDs de autor, nos quais rompe com o discruso poético tradicional. Isso, sem contar com parcerias gravadas nos discos de Abidoral Jamacaru, Régis e Rogério, Falcão, Marta Aurélia e na coletânea do Canta Nordeste, edição em que o Ceará obteve a sua melhor performance no disputado festival da Globo, quando Ricardo Black ganhou o troféu de melhor intérprete.

“Há poucos dias, fiquei admirado quando li uma entrevista com o Chico Buarque, na qual ele afirma ter em casa algumas dezenas de gavetas com melodias que muitos compositores mandam para ele fazer letras, mas não tem uma só gaveta com letras para musicar. É um sinal de escassez da palavra. Mesmo correndo o risco de incompreensões num mercado viciado e desigual, defendo o compromisso do autor com a essência da sua obra. Não faz sentido nivelar por baixo para atingir indicadores de sucessos duvidosos. Precisamos insistir no discurso, na expressão com significados. Sem o verbo, somos meros animais”, arremata categórico.

E sempre procuro fazer o melhor possível, sem neuras ou ambições que possam violentar a pureza contida em cada trabalho”. Sem a proteção de um rótulo específico que o defina no meio cultural, Flávio Paiva diz que prefere recorrer a uma expressão do compositor paulista Arnaldo Antunes, e ficar no rol dos inclassificáveis.