Diário do Nordeste, Caderno 3, 16/10/2001

André Marinho

“Antes era preciso somente o ângulo visual para se olhar um quadro. Hoje necessitamos mais que isso, queremos também o ângulo do sentimento.” – Antônio Bandeira 

O amigo que já se foi. A obra que permanece. Estrigas conheceu o pintor Antônio Bandeira em sua casa, no Mondubim, na década de 40, durante uma panelada oferecida por Manuelito Eduardo Campos a Antônio Girão Barroso, quando este voltava do Sul, regada a cachaça. Mais cearense impossível.

Após o contato inicial, outro dia inesquecível com o artista, que acabava de chegar de Paris, em 1951, e já era reconhecido em sua própria terra, sendo cumprimentado na rua por pessoas que não conhecia, dando autógrafos e ficando vermelho de vergonha, modesto que era.

Não é de hoje a admiração de Estrigas pelo talento universal de Antônio Bandeira, considerado por ele o maior artista plástico cearense da segunda metade do século XX, reconhecido pela crítica internacional, pelo mercado, e vanguardista no conceito do abstracionismo lírico e na liberdade de pintar.

Após mais de dez anos na gaveta, circulando pela secretaria de Cultura, Universidade Federal do Ceará e outras entidades menos votadas, “Bandeira: A Permanência do Pintor” finalmente aconteceu: será lançado hoje, 20h, na Galeria Multiarte, com patrocínio do Museu Firmeza, dirigido pelo próprio autor, Estrigas – depois da venda de alguns quadros e ajuda de amigos para viabilizar a publicação.A idéia dos escritos surgiu de um pedido a Estrigas ao então secretário de Cultura, Paulo Linhares. Na época, ele queria uma exposição e o lançamento do livro. O destino não realizou o esperado. Mas não ficou a mágoa. “Hoje eu agradeço ao Paulo, pois se não houvesse o pedido dele talvez a obra não existisse”, lembra Estrigas.

Em uma visita ao Museu Firmeza, o curador da Multiarte, Max Perlingeiro, pediu um trabalho de Estrigas sobre Raimundo Cela. Admirador confesso de Bandeira, Perlingeiro comentou sobre o livro e ofereceu ao espaço para o lançamento e a exposição.

Lugar melhor impossível. A Multiarte realizou em 1999 “Antônio Bandeira – Pinturas e Desenhos” uma das melhores exposições dos últimos anos, que além de ter reunido obras do artista em sua fase expressionista e abstracionista em óleo, aquarelas, guaches, têmperas e desenhos, teve a sensibilidade de reproduzir a mansarda em que o artista viveu, na Paris dos anos 40 e 50, com objetos pessoais, inclusive.

O livro deveria ter saído antes de outra obra fundamental sobre o artista, escrito em 1996 pela crítica de arte Vera Novis, que inclusive pesquisou bastante no acervo de Estrigas. Bem editado, bom papel, boas reproduções, o livro é fundamental na estante de qualquer admirador de arte.

Como também o livro que agora chega e tem a assinatura mais do que autorizada de Estrigas, amigo pessoal de Bandeira e profundo conhecedor de sua obra. Além de poesias, material pesquisado em revistas e jornais, “Bandeira a Permanência do Pintor” tem novidades.

A primeira, explica Estrigas, diz respeito a omissão sobre a exposição que ele fez no Ibeu, na Fortaleza de 1951, a primeira após a viagem a Paris, mostrando toda a influência do universo parisiense, numa mostra que teve profundo reflexo no universo artístico cearense durante muitos anos, “mesmo que alguns artistas não reconheçam essa influência”, diz Estrigas.

Outra novidade inédita é a reprodução de alguns trechos de cartas do artista para Zenon Barreto. Alguns impagáveis, literalmente, onde Bandeira reclama da demora no pagamento oficial de algumas obra adquiridas pela prefeitura e pelo governo. Nada diferente do respeito que alguns governantes “devotam” aos artistas, ainda hoje.

A mais importante: a reprodução de um futuro roteiro de filme sobre Bandeira, escrito e desenhado pelo próprio, na década de 60 e dado de presente ao artista e cineasta João Maria Siqueira. Este antes de morrer e não ver concretizado o projeto, repassou os escritos e desenhos ao jornalista Flávio Paiva, que doou ao acervo de Estrigas, que agora oferece ao público a oportunidade de conhecer mais uma faceta de Bandeira, que morreu com sonho não realizado de fazer um filme autobiográfico.

Além do livro, a Multiarte inaugura também hoje a exposição “Homenagem a Antônio Bandeira”, com 26 pinturas e desenhos de artistas cearenses contemporâneos de Bandeira: Aldemir Martins, Afonso Bruno, Barrica, Barboza Leite, Jean Pierre Chabloz, Mario Baratta, Hermógenes Gomes da Silva, Nice, João Siqueira, Joaquim Arraes, Jonas Mesquita, José Fernandes, Estrigas, Hélio Rôla, Chico da Silva, R. Kampos, Delfino, Murilo Teixeira, Afonso Lopes, Raimundo Garcia de Araújo e Zenon Barreto.

Todos tiveram algum tipo de contato com o homenageado, fosse no Centro Cultural de Belas Artes, na Sociedade Cearense de Artes Plásticas (SCAP), nos ateliês da vida, na boêmia.

O livro de Estrigas resgata um pouco a memória desse vanguardista, nascido em 1922, um mês depois da Semana de Arte Moderna, em São Paulo. Com uma carreira meteórica, o artista ganhou o Salão de Abril aos vinte anos. Quatro anos depois, radicou-se em Paris, como bolsista do governo francês, onde freqüentou a Escola Superior de Belas Artes. Lá, mergulhou fundo na abstração lírica, brilhando e se consagrando na Europa, nas duas décadas seguintes. Seu precoce falecimento, em 1965, na França interrompeu sua carreira. “Talvez ele pudesse estar ao lado de artistas como Picasso e Portinari, se tivesse vivido mais”, avalia Estrigas.

Ele reclama da falta de sensibilidade oficial para manter uma Sala Especial do artista, no Museu de Arte da Universidade Federal do Ceará . “Ao tempo do reitor Martins Filho, a UFC adquiriu 28 trabalhos dele e rendeu-lhe uma devida e justa homenagem, instalando a sala especial”, lembra. “Agora, o MAUC tornou sem efeito a homenagem, desfazendo sua Sala, formada por trabalhos doados com a condição de ficarem na Sala Especial”.

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