Memória viva da pedagogia
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno3, pág.3
Quinta-feira, 19 de Janeiro de 2012 – Fortaleza, Ceará, Brasil
Montevidéu tem um aconchegante e surpreendente Museu Pedagógico, que está localizado na bela e arborizada praça Cagancha, no centro da cidade. Fundado em 1889, esse espaço de memória dinâmica da educação tem biblioteca, hemeroteca, acervo em Braille, sala de debates e uma exposição de peças incríveis, que mostram como era a educação da palmatória, da carteira em fila, do chapéu de burro, da mordaça aos tagarelas e outros instrumentos de castigos humilhantes.
O prédio foi construído entre 1884 e 1886 para abrigar o Internato Normal, o Museu e a Biblioteca Pedagógica e a Escola de Aplicação, com a finalidade de preparar educadores para a reforma popular idealizada e implementada com muito sucesso por José Pedro Varela (1845 – 1879), educador, escritor e jornalista considerado um dos ícones da mais original mentalidade uruguaia. A reforma vareliana foi uma grande conquista social e política porque contribuiu efetivamente para o jeito de ser e de pensar do povo uruguaio.
O Uruguai, mesmo enfrentando os problemas comuns às sociedades coloniais, estruturadas em economia de commodities – realidade que o coloca em permanente e desigual esforço de avanço rumo ao mercado de produtos com valor agregado, perspectiva já reclamada por Varela há mais de 135 anos – é hoje um país com cerca de 97% de alfabetizados e uma sociedade internacionalmente reconhecida pela elevada qualidade de vida e pelo baixo índice de corrupção e de insegurança.
Nos últimos cinco anos tornou-se referência mundial na aplicação do computador como ferramenta didático-pedagógica em escola pública e democrática. Essa política de uma máquina por aluno e por educador, com acesso gratuito à internet, iniciada no governo de Tabaré Vázquez (presidente de 2005 a 2010) continua prioridade no governo do atual presidente José Mujica. Só para se ter uma ideia da importância dada ao assunto, o Plano Ceibal (Conectividade Educativa de Informática Básica para a Aprendizagem em Linha), que trata do uso das tecnologias digitais na educação, com vistas ao desenvolvimento social, é um programa vinculado à própria Presidência da República.
É o país de Varela que segue se reinventando no campo da educação. Claro que quando me refiro a José Pedro Varela, estou deixando implícito na chancela do seu nome todas as pessoas que assumiram a causa da educação como uma bandeira nacional uruguaia. A reforma valeriana para a eliminação dos inconvenientes da ignorância contou com ações complementares como a movimentação literária e poética para a valorização da infância, iniciada por Enriqueta Comte y Riqué (1866 – 1949) no final do século XIX, resultando na instituição, no Uruguai, do primeiro Jardim de Infância americano.
A construção de narrativas próprias, com modo de contar e de olhar uruguaio também deu grande impulso à educação no país. Escritores como Horácio Quiroga (1878 – 1937), Juana de Ibarbourou (1892 – 1979) e Jesualdo Sosa (1905 – 1982), produziram trabalhos para leituras escolares, que facilitaram a evolução da ação educativa de Varela e sua proposta de integração do estudante com a escola e com a família, dentro de um sentido de país. A constatação de que a história oficial uruguaia não era realmente uruguaia foi um dos incômodos que impulsionaram José Pedro Varela a inventar uma escola primária (educação básica) que pudesse equalizar oportunidades às diferentes classes sociais.
No século XIX, período de grande afluência dos ideais positivistas, Varela não ficou imune a eles, mas adicionou aspectos socioculturais locais à razão ilustrada, como recurso para entender e promover o que era ser uruguaio e como animar as crianças a terem orgulho do seu país e a construírem uma sociedade que as honrasse. Ele tinha inconformismo transformador, resultante da percepção de que havia um Uruguai legal, institucional, descolado de outro Uruguai real; compreensão que o levou a procurar saídas que aproximassem a forma e o funcionamento da sociedade.
A experiência de vida de José Pedro Varela foi muito intensa e variada, o que o levou a ver o mundo com os próprios olhos e pelos olhos dos autores que o atraiam. Ajudou o pai no comércio, frequentou círculos literários e tinha obstinação por leitura. Escreveu poemas, crônicas, artigos literários e políticos, muitos deles sob o pseudônimo de Cuasimodo. Varela foi o que chamo de cidadão orgânico, pois em tudo o que fez, o seu interesse individual estava vinculado ao interesse coletivo. Ao notar que a educação popular poderia ser um caminho para a mobilidade social fez uma série de conferências, escreveu “Educação do Povo” e participou do grupo que fundou a “Sociedade dos Amigos da Educação Popular”.
Ele queria participar e participou; queria interferir e interferiu. Chegou a criar um diário de oposição chamado La Paz, que passou por altos e baixos, chegando a durar quatro anos (de 1869 a 1873) em tempos de governo fechado. Em apenas meio século depois da independência do Uruguai (1811) escreveu ensaios sobre a importância da educação para o país e isso o levou, em 1876, a ser nomeado Diretor de Instrução e depois Inspetor Nacional, circunstâncias em que teve as condições de lançar seu antológico plano de educação, baseado em uma completa reforma de universalização e obrigatoriedade do ensino.
Em seus escritos sobre economia e política, sempre tratados pelo viés da educação, ele já argumentava que a sociedade deveria ser pensada antes do Estado. Varela acreditava que a melhor maneira de haver bons governantes era ter uma sociedade civil forte. Os governos, na sua compreensão, eram efeitos do estado social e o estado social, uma consequência da qualidade educacional. “Não são os maus governos os responsáveis pela desgraça permanente das nações; é o estado social dessas mesmas nações que marca o perfil dos seus governos” (VARELA, José P. “De Nuestro Estado Actual y sus causas – 1876”, p. 21. Arca, Montevideo, 2008).
Foi preciso bater com firmeza na mesma tecla para mostrar à sociedade que ir para a ação é bem mais razoável do que ficar em intermináveis lamentações. Assim, Varela conseguiu organizar o pensamento de que somente transformando as condições da sociedade, os governos mudariam. “Pretendem mudar o estado atual da sociedade mudando os governos, que são efeito desse estado, em vez de transformar as condições da sociedade para que mudem como consequência os governos” (p. 47). Ele advertia que as iniciativas isoladas das forças sociais e das leis segmentadas são falaciosas e que a solução para o mal-estar social estava na melhoria da educação para todos.
Uma das chaves de Varela abria a passagem do olhar para o entendimento de que a harmonia social decorre da ação conjunta de diversos setores. Outra chave do seu pensamento, que permanece atual, é a que guarda os segredos de que a melhoria da educação eleva o domínio da inteligência sobre o desejo. E tem a chave que destrava as portas da escola para a interação com a família. Mas a sua chave mais valorosa talvez tenha sido a que o fez escapar das dicotomias políticas, de repetição estéril e de classificações retoricamente partidárias, o que o fez priorizar os atos e não as promessas. José Pedro Varela fez tudo isso, puxando o relato do futuro para desenvolver um cotidiano educacional de grande repercussão positiva na vida do seu país.