Literatura para a nova infância
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno3, pág.3
Quinta-feira, 13 de Outubro de 2011 – Fortaleza, Ceará, Brasil
O mundo hipermoderno vem configurando a infância na dinâmica de diversas comunidades físicas e virtuais, entre efeitos de conflitos geoeconômicos, ecoplanetários, de desenvolvimento da modelagem social em redes e de ampliação das possibilidades de trocas culturais. Dentre os pontos de humanização afetados por essas transformações está a significação de leitura. A criança, filha desse tempo marcado pela intensificação do uso da internet, no qual a comunicação digital estimula por si o ato de escrever e de ler, numa espécie de oralidade cifrada, precisa mais que nunca dar densidade à exploração da palavra, elevando o seu poder de múltiplas apropriações para além da paisagem das telas.
A sensação de que as palavras surgem do nada é a mesma que leva muitas meninas e meninos a pensarem que as vacas dão leite em caixa, como se vê nas gôndolas dos supermercados. Esse tipo de impressão vulnerabiliza referências pessoais e culturais na formação de uma nova infância, a um só tempo mais pulverizada de informações e mais exigente em sua necessidade de aprendizagem intercultural. As ideias pasteurizadas e as deduções apressadas que caracterizam o atual campo de elaboração intelectual pede a abertura de novos canais de fruição reflexiva e, para isso, poucos recursos podem ser tão oportunos quanto à literatura.
Depois de relatar os conceitos e a dinâmica da minha fala sobre “A literatura que encanta o público de oito a onze anos”, para convidados da Secretaria de Educação do Estado do Ceará – Seduc (DN, 29/09), fui instigado pelos leitores a dar exemplos concretos de livros que falam com a infância (DN, 06/10) e, ao fazer isso, acabei sendo provocado a pensar se as doze obras da lista apresentada seriam mesmo infantis e juvenis ou títulos mais apropriados ao que se classifica como literatura jovem. A ponderação é instigante porque ajuda a evidenciar o ponto crítico da questão, que é a falta de oportunidade de acesso a obras que estão fora do circuito de novidades comerciais e das decisões de compras motivadas por outros interesses, que não o de montar acervos com bons livros.
Dado que a relação dos doze livros possa ter em seu conjunto a aparência de inapropriada é fácil observar que não, se a estratificamos pela maneira como essas obras despertaram a atenção dos meus filhos: a) “Os irmãos coração de leão” foi ganho de presente de aniversário; b) “O meu pé de laranja lima” surgiu nas rodas de leitura escolar; c) “A famosa invasão dos ursos na Sicília” e “Desventuras em série” chegaram por sugestões de amigos deles; d) a série “Harry Potter” entrou na nossa casa por influência da mídia, mas foi logo assimilada como desejável; e) “A reforma da natureza” eles ganharam de presente da dona Joyce, neta de Monteiro Lobato; f) “Contos de Ionesco para crianças” e “Histórias da pré-história” foram descobertos nas nossas explorações conjuntas em livrarias; e g) “Por um simples pedaço de cerâmica, “Era duas vezes o Barão Lamberto”, “O velho e o mar” e “A pérola” entraram na nossa cota de pais para leituras noturnas.
Das discussões travadas sobre o tema, a partir das duas colunas anteriores, a que fiz por e-mail com Fabíola Farias, coordenadora das bibliotecas e dos projetos de promoção da leitura da Fundação Municipal de Cultura de Belo Horizonte foi a mais consistente em termos de inquietação contra a tendência de esterilização da literatura que respeita a infância. Fabíola é membro votante do Prêmio “O melhor para a criança”, da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ) e além de sua experiência profissional é leitora apaixonada e mãe de uma menina de cinco anos e de um menino de oito anos, a quem faz questão de oferecer bons livros, por acreditar que para gostar de boa literatura as crianças só precisam de uma chance para bons encontros.
Na nossa troca de ideias, ela fez inclusive uma lista de títulos, cujos autores não subestimam os seus leitores, oferecendo-lhes vida e poesia nos mais diversos gêneros e temas: “A casa da madrinha” (Lygia Bojunga, ClB, 1978) , “Bárbara debaixo da chuva” (Nilma Lacerda, Galera Record, 2010), “Meu pai é um homem-pássaro” (David Almond, WMF Martins Fontes, 2010), “Mururu no Amazonas” (Flávia Lins e Silva, Manati, 2010), “Kafka e a boneca viajante” (Jordi Sierra i Fabra, Martins, 2008), “Minha princesa africana” (Márcio Vassallo, Abacatte, 2010) , “Píppi Meialonga” (Astrid Lindgren, Companhia das Letrinhas, 2001), “O fazedor de velhos” (Rodrigo Lacerda, Cosac Naify, 2008) , “Tempo de voo” Bartolomeu Campos de Queirós, SM, 2007) e “Meu amigo Jim” (Kitty Crowther, Cosac Naify, 2007).
Temos opiniões bem assemelhadas no que diz respeito à questão de que “ler só se aprende lendo”, embora na minha compreensão esse processo seja bem mais flexível que o dela. Fabíola é convicta de que “não adianta fazer teatro, contar histórias e vestir fantasias (…) pois o grande lance da literatura é o diferente, o que eu ainda não havia pensado, a coisa por um ângulo que eu ainda não tinha visto, uma possibilidade ainda não vislumbrada, mesmo em histórias tão parecidas com as nossas (…) Temos que parar de vender a idéia de que ler é uma festa, uma maravilha, que te leva para mundos encantados e que basta você querer fazer parte desse mundo incrível, pois sabemos que ler é difícil e exige trabalho, silêncio e isolamento”.
Para mim, a conversa da linguagem literária com outras linguagens (música, teatro, dança, artes plásticas etc) fortalece a ambiência para o interesse do leitor. No meu trabalho, essa combinação tem sido uma constante, especialmente no que se refere ao diálogo entre a literatura e a música. A inclusão do CD com a parte musical no livro é um recurso que a tecnologia oferece e que tem produzido respostas impressionantes na minha experiência. Fico imaginando que, se George Orwell pudesse ter incluído a gravação da música “Bichos da Inglaterra” na sua fábula, o teria feito, ilustrando o trecho em que diz assim: “O velho Major limpou a garganta e começou a cantar. De fato a voz era roufenha, mas ele entoava bem, e a melodia era bastante movimentada” (p. 15, “A revolução dos bichos”, Companhia das Letras, 2007).
Por agradável sincronicidade, enquanto escrevo este texto recebo uma mensagem da educadora Luciana Néri, do Colégio Nossa Senhora das Graças, em Fortaleza, contando como foi importante o livro “Flor de Maravilha” (Cortez, 2004) ser acompanhado das músicas gravadas, para a sua ação educativa: “Durante a nossa rotina escolar pediam sempre: “Professora a música da macaca…” e, a partir daí, surgiu a ideia, através do interesse das crianças, de fazer um Projeto com sua música e literatura (…) os alunos demonstram estar cada vez mais encantados (…) Está sendo uma vivência muito rica também por contar com a participação dos pais”.
Neste aspecto, Fabíola, Luciana e eu concordamos que mais do que a criança, as famílias coloquem a leitura e a escrita em seu cotidiano. “Acho que não existe mais espaço para nada isolado no mundo em que vivemos, mas temos que ter muita clareza dos nossos objetivos quando realizamos atividades nas salas de aulas e nas escolas (…) A fantasia de muitos dos nossos professores, pais e mães ainda não dá conta da literatura”, argumenta Fabíola Farias. E ela diz isso sem discordar que as linguagens dialogam… e eu concordo quando ela fala que pendurar mil apetrechos em livro para aumentar a atração é coisa de quem não acredita que o livro, por ele mesmo, valha a pena.