Ensaio publicado no livro “ONG’s no Brasil: Perfil de um mundo em mudança”
Fortaleza: Fundação Konrad Adenauer, 2003

Ensaio em PDF com as referências bibliográficas

* Este ensaio também foi publicado no livro Anel de Barbante: Ensaios de Cultura e Cidadania. Fortaleza: Omni, 2005.

 Atravessamos um tempo em que ainda predomina o senso de dominação e subordinação como sustentáculo da nossa razão política. A sociedade civil brasileira tem amadurecido bastante, mas não o suficiente para conseguir colocar na agenda nacional as afirmações da sua diversidade singular. Nesse processo de evolução merece destaque o papel político desempenhado pelas ONGs – organizações não-governamentais – cujo motivo de existir produz naturalmente situações de constantes embates na dinâmica social e suas diferentes circunstâncias históricas. A concentração excessiva de poder e de riqueza prevalecente no Brasil causa um inconveniente embaraço cultural e social aos avanços em favor do equilíbrio democrático.

Diante dessa conjuntura qualquer movimentação que represente a possibilidade de alternativas sinalizadoras da diminuição de privilégios passa a ser alvo de uma congênita decomposição progressiva. As ONGs têm se defrontado com o agravamento desse problema à medida que ganha corpo uma ampla campanha de alteração da sua imagem. Na frente de batalha, a infantaria dos órgãos oficiais e da iniciativa privada avançou diluindo o significado da expressão ONG ao chamar desta mesma forma um sem-número de organizações com semelhança jurídica, mas imbuídas dos mais variados propósitos. Na retaguarda, a artilharia da mídia passou a emitir juízo de reforço à pulverização como parte da vulgata do fundamentalismo de mercado que dissemina mundo afora padrões de percepção homólogos à sua ética de que tudo está à venda.

Essa sabotagem sistêmica para desvirtuar junto à opinião pública o sentido político das ONGs chegou a um ponto que muitas dessas organizações foram contaminadas com a idéia de que estavam em crise de identidade. E muitas estão. Nesse sentido torna-se mais e mais urgente a intensificação do debate com a finalidade de contribuir para a elucidação do entrave que tem abalado o perfil das organizações não-governamentais. Clarear os parâmetros que distinguem as ONGs, como organizações apartidárias, mas absolutamente movidas por consciência crítica e política, é um exercício indispensável a quem quer que acredite na força da democracia participativa e, conseqüentemente, um assunto de interesse profundo da sociedade civil.

A diferença entre as ONGs, no sentido político da expressão, e as demais associações sem fins lucrativos, mesmo que consideradas oficialmente de utilidade pública, está no efeito da sua ação e não na verborragia das respectivas missões e objetivos. Não é difícil observar se tais ações são transformadoras e direcionadas para o longo prazo ou se concorrem como paliativo para acalmar os pobres, conformá-los e fazê-los compreender as razões divinas, comerciais e naturais das desigualdades.

No Brasil, as ONGs desempenham um papel fundamental na melhoria do padrão político da sociedade civil, por atuarem diretamente na reforma da base do alicerce cultural que suporta as instituições ainda duramente vulneráveis ao poder do estado patriarca e do mercado padrasto, tradicionalmente coniventes entre si. A ação inclusiva das ONGs soma-se aos impulsos dos movimentos sociais no intuito de assegurar que os interesses da população partam de processos locais e da sociedade civil para uma relação integrada com as suas instituições públicas e privadas, configuradas nas esferas do Estado e do Mercado. Pela capacidade da sociedade organizada de perceber o que quer, de interferir na formulação de políticas públicas e na lógica do comportamento comercial, se mede o potencial de construção da sustentabilidade de um país. E para isso, dentro da realidade de superabundância e insuficiência brasileira, é fundamental que as ONGs não percam a direção do trabalho de instigação da mudança cultural e de transformação das práticas políticas e econômicas dando solidez e sentido de destino à nação e sua integração continental e planetária.

No subtexto de muitas falas a respeito das ONGs se nota uma dubiedade pairando no ar, como é o caso da argumentação difundida na rede mundial de computadores por um programa ambiental ironicamente denominado A Última Arca de Noé:

“Não obstante as críticas dirigidas às Organizações Não-Governamentais
(ONGs), não faltando até quem peça sua extinção pela intervenção
governamental, a sua existência é fundamental para o desenvolvimento
da sociedade moderna (…) Em vista do crescimento do ´potencial
filantrópico´expresso no trabalho das ONGs e a possibilidade de utilizar
oficialmente este ´filão´para as causas de interesse público, bem como,
de certa forma controlar as inúmeras ONGs, foi promulgada a Lei nº
9.790, de 23 de março de 1999, que criou e disciplinou as Organizações
da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIPs), que não passam de
pessoa jurídica de direito privado, sem fins lucrativos, ou seja, ONGs (…)
Só que as OSCIPs passam a ter o reconhecimento oficial de interesse
público, possibilitando que recebam incentivos financeiros”

Apesar de pagar impostos, votar, produzir e comprar, para manter o poder público, como organismo regulador do benefício coletivo, e a feira, como espaço de vitalização da vida econômica, a sociedade é, via de regra, tratada por ambos como uma instância de inutilidades. O senso comum sobrevive aprisionado a essa regra dramática da existência simbólica. Os agentes do Estado e do Mercado no Brasil fazem as vezes de duas macrocorporações, com desigualdades e discriminações internas, mas, como em qualquer conjunto de proveito corporativo, quando se sentem ameaçados de perder privilégios, agem em bloco para evitar o decréscimo de vantagens.

Quando acontece do governo adotar medidas que poderiam levar ao estabelecimento pleno das funções do Estado como indutor do desenvolvimento, a exemplo das reformas tributária e da previdência, eclode toda uma tensa reação capitaneada pela minoria que se locupleta com as deformações da estrutura pública. A gravidade desse fato é que as teses responsáveis por tal comportamento passam imediatamente a serem reproduzidas ingenuamente pelos grupamentos subalternos integrantes da distorcida estrutura de benefícios fiscais e de cuidados para com as pessoas nas questões de saúde, aposentadorias e montepios. Dependendo do tamanho da contrariedade, esses mancomunados assaltantes da res publica, muitas vezes legais mas ilegítimos, não se envergonham de forçar a instabilidade no país como arranjo de insegurança para surgirem em seguida vendendo promessas de soluções.

Por desenvolverem ações que no longo prazo tenderiam a criar defesas culturais orgânicas contra esse tipo de prática aristocrática fora de tempo, as ONGs são indesejáveis. A intervenção das organizações não-governamentais no processo de preparação do Brasil para ser um país decente e bem-afortunado tem sido fundamental porque contribui para o restabelecimento do sentimento de comunidade, como possibilidade de um mundo a ser alcançado com mobilização e organização social. Quando tudo parecia nebuloso, as janelas da cidadania estavam fechadas e o ambiente coletivo abafado, as ONGs ensejaram sensações de aconchego nos mais distantes lugares do País. A consciência comunitária gera segurança e, por conseqüência, indivíduos mais afoitos a lutarem pelo que acreditam e a superar a busca da salvação individual para os problemas compartilhados. É o que revela com honesta acuidade o sociólogo polonês Zygmunt Bauman em seu livro Comunidade:

“Para nós que vivemos em tempos implacáveis, tempos de competição e
de desprezo pelos mais fracos, quando as pessoas em volta escondem o
jogo e poucos se interessam em ajudar-nos, quando em resposta a
nossos pedidos de ajuda ouvimos advertências para que fiquemos por
nossa própria conta, quando só os bancos ansiosos por hipotecar nossas
posses sorriem desejando dizer sim, e mesmo eles
apenas nos comerciais e nunca em seus escritórios – a palavra
comunidade soa como música aos nossos ouvidos. O que essa palavra
evoca é tudo aquilo de que sentimos falta e de que precisamos para viver
seguros e confiantes”.

Com todo o mérito resultante de uma atuação em forma de mecanismo de impulsão à vida civil, política, social, cultural, econômica e na relação com o meio ambiente, nas mais recônditas comunidades brasileiras, as ONGs ainda não foram entendidas pela população a ponto de serem amplamente consideradas como parte do patrimônio da cidadania. Para a opinião pública talvez não passem de entidades incidentais que não pertencem ao governo, por não serem oficiais, nem ao mercado clássico, por não visarem lucro, sem grandes interpretações do que isso realmente possa significar. Foi nesse ponto, relativo a aspectos burocráticos, que os agentes do Mercado e do Estado verificaram que poderiam investir para a desconstrução das ONGs, enquanto sociedade civil organizada, e estabelecerem uma relação de utilização do seu conhecimento, como um mal necessário.

Coragem de correr riscos
No período em que as forças armadas assumiram o poder político na República Federativa do Brasil (1964 – 1984), mesmo entre trancos e barrancos, Estado e Mercado acomodaram interesses enquanto macrocorporações. Em ambos os lados, porém, muitos cidadãos perderam seus direitos civis, foram torturados e escorraçados, sofrendo toda sorte de crueldade. Entretanto, enquanto instância de poder genuíno da coletividade, a sociedade civil organizada foi terminantemente segregada. Essa apartação, somada ao golpe militar e a tudo o que ele representa, derivou com o passar dos anos em uma íntima aversão ao regime ditatorial e no ressurgimento dos movimentos sociais. Foi neste cenário que nasceram as ONGs.

A expressão Organização Não-Governamental tinha nesse sentido a intenção de estabelecer um outro parâmetro para a sociedade. Ou seja, de que era possível constituir um poder público que não se assemelhava com o que comandava o País de maneira fechada. Era a sociedade civil se preparando para assumir o seu poder de categoria política, de ator mobilizador e realizador no processo de redemocratização do país. Tanto que muitos dos fundadores de ONGs foram os anistiados que retornaram ao Brasil no final dos anos 70. O exemplo mais notório é o caso do querido e lendário sociólogo Betinho (Herbert de Souza) que, ao lado da companheira Maria Nakano e outros intelectuais comprometidos com a democracia, iniciaram, desde o exílio, a fundação do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas, Ibase, no Rio de Janeiro, formalizado em 1981 como organização política da sociedade civil.

Naquele momento, mesmo havendo a preocupação de se distinguir da empresa privada com fins lucrativos, a marca das ONGs era uma referência explícita ao não-governo e trazia um certo espírito da clandestinidade. Na maioria dos estados brasileiros, além dos cidadãos e cidadãs que retornaram do exílio, ex-militantes das entidades de juventude católica, remanescentes do movimento estudantil, profissionais liberais, empresários progressistas, lideranças dos partidos políticos alijados e dos movimentos populares e sociais também se mobilizaram para fundar entidades de assessoramento à sociedade civil na luta pela redemocratização brasileira.

No Ceará, a primeira ONG a ser constituída com o conceito que passou a caracterizar essas organizações no Brasil foi o Centro de Estudos do Trabalho e de Assessoria ao Trabalhador – Cetra. Com raízes nas movimentações por emancipação social durante a segunda metade da ditadura militar, através do suporte advocatício aos trabalhadores rurais na luta pela Reforma Agrária, com apoio das Comunidades Eclesiais de Base – CEB´s e, em seguida, da Comissão Pastoral da Terra – CPT, os militantes que fundaram o Cetra se viram, na segunda metade dos anos 70, abraçando um conjunto de atividades que, para dar consecução, passou a ser necessário formalizar uma ONG. No livro Terra Feira de Gente, a jornalista Ana Naddaf relata o momento inspirador dessa decisão:

“Entre o curso dirigido a lideranças comunitárias de vários municípios
sobre o tema “renda da terra” e os primeiros trabalhos de assessoria
jurídica junto aos trabalhadores rurais de Jardim e Monte Castelo, um ato
público seria o símbolo do período de lutas que se seguiria. Também
seria uma espécie de estopim para o renascimento do movimento sindical
rural no Ceará e para a confirmação de que uma instituição precisaria ser
fundada para atender aos novos pedidos de acompanhamento
comunitário e assessoria jurídica. O ano era 1979”.

O Cetra, no Ceará, a exemplo do Ibase, no Rio de Janeiro, foi formalizado em 1981, quando começou a se esboçar o conceito de ONG. Na época uns pronunciavam O, N, G, letra por letra, e outros já se aventuravam a expressar a sigla em forma de termo condutor de um conceito próprio. O sentido tomou corpo e passou a ser utilizado por entidades que há muito desenvolviam trabalhos dentro da mesma concepção. A Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional – FASE – , por exemplo, tinha escritório de representação e acompanhamento de projetos em vários estados brasileiros, inclusive no Ceará, bem antes do nascimento da expressão ONG, como símbolo de um posicionamento político pela ótica da sociedade civil. Situação parecida aconteceu com o Escritório de Planejamento Rural – Esplar – que tinha dez anos de existência quando se tornou uma ONG, em 1984, mantendo a mesma sigla para o nome de Centro de Pesquisa e Assessoria. Com uma rápida leitura de parte do propósito de cada uma dessas entidades é possível observar a afinidade política que originou as ONGs pioneiras no Ceará:

“Estimular a formação de opinião pública. Proporcionar a organização
sócio-produtiva, efetivar o exercício da cidadania e da democratização e
do poder local, realizar ações criativas de ocupação e geração de
renda e contribuir para
transformar indivíduos em cidadãos com capacidade de formular e
executar propostas para o equacionamento de seus problemas
concretos”/CETRA (…) “Contribuir no processo de construção de uma
sociedade justa, democrática, solidária e respeitadora do meio ambiente,
através da intervenção na realidade e da produção de conhecimento,
direcionadas para o apoio à organização independente e autônoma das
classes trabalhadoras e dos movimentos populares, étnicos, raciais e de
gênero”/ESPLAR (…) “Contribuir para o questionamento público do
modelo de desenvolvimento nacional, evidenciando sua
insustentabilidade social, cultural e econômica e ambiental, fomentar
políticas que efetivem o acesso dos setores excluídos da população;
contribuir para o fortalecimento dos movimentos sociais, com alternativas
de trabalho e renda e reforma agrária”/ FASE.

Com a legitimação do trabalho realizado, o que inicialmente era uma tendência política de participação migrou para a consolidação das ONGs. A promoção dessa mudança foi sedimentada com base no compromisso assumido por entidades que construíram confiança pela maneira digna com que fizeram do propósito ações concretas. Entidades como o Centro de Ação Comunitária – Cedac (Rio de Janeiro), notabilizado pelo extraordinário trabalho de formação sindical; o Instituto de Estudos da Religião – ISER (Rio de Janeiro), “pelo fortalecimento da sociedade civil e pela plena cidadania no Brasil”; e o Movimento de Organização Comunitária – MOC (Feira de Santana), cujo objetivo é a “construção do espaço público a partir das ações e atividades desenvolvidas nos projetos de Educação Rural, Fortalecimento da Agricultura Familiar, Gênero, Movimentos Sociais”, são, entre outras, referências de atuação política das organizações não-governamentais.

Com base nessas menções facilita dizer que a expressão ONG foi aquilatada pela ação de um grupo de organizações da sociedade civil caracterizadas pela ousadia de ter entre os seus objetivos a luta pela emancipação social e política, calcada no apoio efetivo aos movimentos sociais e populares, no empenho em favor da democracia participativa e na busca por alternativas solidárias de desenvolvimento. Com o declínio da ditadura militar no Brasil esses atores passaram a vivenciar seus compromissos no plano da formação de uma cultura de valorização do sujeito e da expansão dos direitos humanos e sociais, através de proposições de alternativas políticas, econômicas, sociais, culturais e ambientais.

O espaço parecia ocupado
Da mesma maneira que é comum existirem reações de grupos folclóricos em relação às companhias artísticas que os representam, sob a alegação de que tais organizações tendem a ofuscar a imagem dos brincantes tradicionais, as ONGs sofreram algumas incompreensões dos movimentos sociais, porém conseguiram se firmar nos anos 70. A jornalista e professora Kátia Azevedo, das Faculdades Integradas de Comunicação – FIC, lembra que esses atores civis na cena política brasileira “são movimentos que, apesar de apresentarem características diversas, têm um objetivo em comum: reivindicar espaços dentro da sociedade”5. Pode-se dizer que essa foi a primeira crise de identidade das ONGs. Afinal elas representavam pontos de vista e ações da sociedade civil que, de certo modo, eram confundidos com os movimentos sociais, com os quais se somavam “como organizações de apoio, de assessoria, de formação política, de prestação de serviços para os movimentos populares”, conforme definição do sociólogo Juarez de Paula.

“Essa sinergia entre ONGs e movimentos sociais favoreceu a visibilidade
de vários temas que passaram a merecer a atenção da opinião pública,
constituindo-se na base de uma nova
agenda política construída a partir da sociedade civil (…) a dívida externa,
a reforma agrária, a agricultura alternativa, o direito de moradia, os
direitos da mulher, a discriminação racial, a violência urbana, a defesa
das populações indígenas, entre outros. Estes foram os temas que, na
maioria dos casos, foram assumidos como objeto de trabalho das ONGs,
associados a novos movimentos sociais em processo de construção (…)
Novos temas foram incorporados na década de 90: meio ambiente,
desenvolvimento sustentável, desenvolvimento local, prevenção da AIDS
e doenças sexualmente transmissíveis – DST, segurança alimentar,
direitos da criança, direitos do consumidor, políticas públicas, entre outros
(…) No aspecto político, as ONGs têm abandonado a postura de agentes
construtores da democracia social, entendida como capacidade de
autonomia e autogestão da Sociedade Civil, inclusive como reguladora do
Estado e do Mercado”.

A guerra fria, evidenciada pelas tensões causadas na disputa pela hegemonia mundial, existente entre EUA e a então URSS, teve influência positiva na consolidação das organizações não-governamentais brasileiras. Na tentativa de retardar os efeitos diplomáticos, ideológicos e econômicos das duas superpotências, vários países europeus ampliaram suas contribuições a essas articulações de cidadania. O papel instigador assumido pela igreja progressista ganhou reforço financeiro das agências de cooperação internacional não-oficiais e, com isso, as organizações não-governamentais ampliaram sua força participativa. A parceria internacional é política, econômica e cultural. Muitas agências de cooperação internacionais não-governamentais estão retirando o apoio às ONGs brasileiras sob a alegação de que o Brasil é um país rico e que o maior problema dos brasileiros é o elevado índice de concentração de riqueza. Esta é uma verdade que aumenta a importância da ação transformadora com a participação das ONGs. Fomentando a afirmação cultural, o respeito ao outro, a economia solidária, enfim, experimentando formas alternativas de olhar e de viver, desenvolvidas a partir da compreensão integral e complementar da organização comunitária inspirada na própria dinâmica cultural, as ONGs constituem parte relevante da rede de contra-hegemonia à globalização neoliberal. Essa compreensão sugere que se traga à memória o significado real dessas organizações para que, fortalecidas, interajam com o Estado e o Mercado pelos os olhos da sociedade civil e não a título de simples tercerizadas.

O sociólogo Juarez de Paula, que é sócio do Centro de Estudos do Trabalho e de Assessoria ao Trabalhador – Cetra, e secretário-executivo do Instituto de Política, de Brasília, ajuíza que o crescimento do apoio religioso em países como o Brasil tinha como justificativa o fortalecimento da sociedade civil, através da organização popular, da defesa do Estado de Direito e da luta pela democracia.

“Na década de 70, quase todos os países latino-americanos estavam
submetidos a ditaduras militares. As agências privadas de cooperação
internacional, sobretudo as européias, tinham, pela sua origem, um forte
compromisso com a defesa da democracia liberal. Assim sendo, pouco a
pouco foi sendo construída uma aliança entre essas agências e os
movimentos de resistência democrática. Ocorre que nesses movimentos
de resistência democrática, havia uma forte presença da esquerda,
inclusive da esquerda revolucionária. Assim, por circunstâncias históricas
muito particulares, agências privadas de cooperação internacional, de
caráter religioso, com uma origem anti-comunista, muitas vezes se
tornaram as maiores financiadoras dos movimentos democráticos e de
esquerda na América Latina”.

As ONGs tiveram portanto um papel fundamental no desmonte da ditadura, com apoio da igreja progressista que dava uma espécie de chancela ou passaporte para os financiamentos internacionais dos fundos cristãos. Tanto que na disputa pela hegemonia internacional receberam apoio financeiro e político de muitos países da social-democracia européia que viam nas ONGs pequenos focos de resistência contra-hegemônico à ocupação estadunidense no Brasil. Com o início do processo democrático, a sociedade continuou se organizando em ONGs. Tinha nascido um modelo de comprovada eficiência para o fortalecimento da sociedade civil organizada, capaz de continuar influindo na preparação do País para o futuro.

A estadofobia continuava presente no seio dessas organizações. Como elas olhavam pelos olhos dos cidadãos, percebiam que o Estado não era mais militarmente ditador, mas continuava refém das elites conservadoras, patriarcais, preconceituosas e concentradoras de renda e de poder econômico, político, religioso e acadêmico. Nesse período, o setor conservador da igreja atacou com veemência a “opção preferencial pelos pobres”, aprovada na Conferência Episcopal Latinoamericana, realizada em Medellín, Colômbia, em 1968, tomando as providências necessárias para desacelerar o apoio das pastorais aos movimentos sociais, sindicais e às ONGs, promovendo estrategicamente uma ação de deslocamento e substituição dos líderes religiosos da Teologia da Libertação, que incomodavam a nova ordem.

Com a priorização da ação pastoral dirigida ao alheamento da realidade e foco prioritariamente nas questões do espírito, a cúpula da igreja procurou se empenhar no enfrentamento das religiões de mercado e lavou as mãos para as causas sociais. Da rajada desferida pelos setores conservadores do clero, sobraram algumas ilhas de mobilizações pastorais ligadas às organizações comunitárias e aos movimentos populares. Um escrito do sociólogo Marcos Vieira, fundado na sociologia da religião, desvenda bem essa característica de que a igreja é una e diversa, formada por discursos diferenciados em uma só instituição8.

Companheiros da conquista
Com a vitória eleitoral do ex-sindicalista Luís Inácio Lula da Silva para a Presidência da República, no pleito de 6 e 27 de outubro de 2003, e a ampliação do número de parlamentares eleitos com amplo apoio dos movimentos sociais e populares, as perspectivas mudaram, embora o fato do governo estar democrático não queira dizer que o país seja democrático. Lula é o primeiro brasileiro, com mentalidade evoluída na pedagogia do deserto da brasilidade, a ser eleito Presidente do Brasil. Essa afirmação não pretende tirar a importância de outros presidentes que deram grandes contribuições para a formação do País, quer apenas dar uma imagem da insipiência da cultura democrática brasileira.

As dificuldades que o Governo Federal passou a enfrentar para abrir uma agenda capaz de discutir as questões de inclusão não só de consumo, mas de cidadania, levou o setor progressista a retomar as discussões em favor dos movimentos sociais que buscam mais justiça para superar as desigualdades. “O objetivo principal é analisar os desafios das igrejas diante da realidade latino-americana, com o avanço da globalização e do pluralismo religioso e a fermentação de movimentos alternativos, simbolizados sobretudo pelo Fórum Social Mundial”9. No horizonte do contexto político brasileiro ressurge, a partir deste encontro realizado em São Paulo nos últimos dias do mês de junho de 2003, a senha das lideranças religiosas engajadas na luta para a superação da pobreza e pela construção da felicidade longe dos ditames das doutrinas econômicas e seus embustes de consumo. São posicionamentos que casam com a filosofia das ONGs e que dizem respeito aos princípios norteadores do Fórum Social Mundial10.

Relação com o Mercado
A vitória das mobilizações nacionais por eleições diretas e a entrada em curso do processo de redemocratização no país, apresentaram as ONGs novas expectativas e interrogações. Em 1988, foi criada no Ceará uma das primeiras ONGs brasileiras a serem financiadas por empresa nacional, o Instituto Equatorial de Cultura Contemporânea. O preconceito por parte das outras ONGs não procurava ser discreto, embora muitas delas fossem financiadas por fundos privados internacionais. Por outro lado, era também visível a discriminação do Equatorial por parte das empresas que mantinham institutos e fundações. Numa reunião ocorrida no início dos anos 90, na sede da Fundação Roberto Marinho, no Rio de Janeiro, quando estava em criação o Grupo de Institutos e Fundações – Gife, a filiação do Instituto Equatorial foi rejeitada. Mesmo sendo uma ONG mantida por empresa de capital cem por cento nacional, ela não fazia parte do organograma da empresa e isso foi interpretado como um risco de perda de controle.

Para aquele grupo que ensaiava o que viria a ser a onda de responsabilidade social no Brasil, o Instituto Equatorial tinha o defeito de ser uma entidade da sociedade civil e não de uma “organização de origem privada que investe no social”. Era o Mercado se preparando para ocupar o espaço das ONGs, para promover ações sociais à sua maneira. Situação de pragmática da exclusão que a jornalista e professora Magali do Nascimento Cunha, da Escola de Comunicação e Arte – ECA/USP elucida em texto apresentado no II Mutirão Brasileiro da Comunicação da União Cristã Brasileira de Comunicação Social:

“A noção de exclusão social nasce de um momento recente que vem
sendo experimentado como o triunfo do capitalismo como um sistema
salvador do mundo. A exclusão surge como uma noção crítica a essa
situação enfrentada no atual momento com o sistema de mercado, que é
um sistema que teoricamente operaria para que homens e mulheres
pudessem ter acesso à felicidade por meio do consumo (…) Ao mesmo
tempo em que se passa essa noção de mundo globalizado, os meios de
comunicação também estão tornando esse mundo mais fragmentado,
dividido rachado. Porque a única dimensão realmente mundial do
mercado é que este mercado, mais do que unir, quer realmente
unificar”11.

A dupla discriminação ao Equatorial só foi arrefecida com o reconhecimento dos efeitos do seu trabalho, de viés essencialmente plural e includente, desenvolvido com base na democratização da informação. Mesmo assim outras dificuldades com as ONGs tradicionais seguiram a trajetória de uma meia dúzia de anos daquela organização não-governamental. As ONGs, salvo raras exceções, nasceram vinculadas a questões sociais pontuais e o Instituto Equatorial centrava seu olhar no aspecto mais amplo da dimensão cultural, fazendo uma nítida distinção entre pobreza econômica e pobreza política: “Uma, como responsável pelos elevados índices de miséria social, e, a outra, como reprodutora das condições estruturais determinantes da desigualdade”12. Antes da sua formalização em 1988, o Equatorial realizou uma ampla pesquisa de visão de futuro da sociedade no Ceará, sem a interferência dos órgãos estatais e dos institutos de pesquisa de mercado.

A instituição foi lançada com destacada cobertura editorial dos meios de comunicação numa campanha suportada pela divulgação dos dados da pesquisa qualitativa e por seminários nas diversas regiões do cearenses, incluindo Fortaleza. Essa ação de difusão do trabalho resultou em muita participação, mas resultou também em grande visibilidade, o que foi visto pelas demais ONGs como fora de propósito. Todas as ações do Equatorial foram intensamente cobertas pela imprensa. Questões relativas à fome, à inclusão digital e à cultura como fator de desenvolvimento se somavam aos apelos a parcerias com os governos municipais, estaduais e federal e da iniciativa privada na consolidação de projetos que pudessem ser conduzidos pela sociedade civil organizada.

O Equatorial é um exemplo de que a compreensão do Brasil como uma nação pobre vivendo em um país rico, ensejava no papel político das ONGs o envolvimento do Estado e dos agentes do mercado nacional. Para nascer um compromisso de país seria necessário esse envolvimento da iniciativa privada e dos poderes públicos. Atualmente, muitas agências da cooperação internacional não-governamental estão deixando de apoiar as ONGs brasileiras com o argumento de que precisam atuar em países africanos e asiáticos comprovadamente pobres ou empobrecidos pela ação das disputas geopolíticas internacionais.

Sobre muros e pontes
Com a queda do Muro de Berlim (1961 – 1989) – simbolizando o fim da guerra fria – e com a conclusão da transição democrática (1985 – 1988) – representada pela promulgação da nova Carta Constitucional Brasileira – os recursos provenientes do exterior para financiamento das ONGs começaram a rarear. O Leste Europeu passou por questões óbvias a ser o alvo de boa parte desses subsídios políticos, da mesma forma que no pós-Segunda Guerra, a criação da cooperação internacional formal foi inicialmente projetada para fazer o trabalho de reconstrução da Europa arrasada por aquele conflito bélico internacional.

Em que pese o fato do restabelecimento da ordem democrática no Brasil contou com a participação ativa das organizações não-governamentais, ironicamente elas começaram a entrar em crise de sustentação financeira. Segundo Michael Bailey, que trabalhou por mais de duas décadas com programas de agências internacionais na América Latina e Caribe, tais discussões levantam questões mais amplas a exemplo da “desejável relação entre relação entre Estado e sociedade, entre organizações sem fins de lucro e o setor privado e sobre o papel do setor não governamental na prestação de serviços sociais. Há debates complexos e controvertidos em torno destes tópicos”

As ONGs identificaram sutilezas da gente brasileira e trabalharam com o seu espírito participativo, obtendo resultados sociais surpreendentes. Mas não alardearam o feito. O governo brasileiro criou projetos do tipo Comunidade Solidária, envolto num intenso apelo de propaganda, como instrumento para o combate à pobreza e a exclusão social, mediante a promoção de parcerias entre Estado e Sociedade. Por terem desenvolvido uma tecnologia de relacionamentos comunitários destacada pelo diálogo, mobilização e credibilidade, com custo bastante inferior aos praticados pelos programas oficiais, além de atuarem em todo o território nacional, as ONGs passaram a ser vistas como potenciais tarefeiras da nova estratégia.

Lanterna dos afogados
Os consultores de empresas, por sua vez, descobriram as ONGs e embarcaram no filão da Responsabilidade Social com os coletes salva-vidas do vale tudo da filantropia e do assistencialismo. Estado e Mercado se aproximaram das ONGs para a realização de parcerias, partindo da premissa de que elas deveriam passar a olhar o mundo pelas lentes dos seus binóculos. As menos convictas deixaram de lado as demandas oriundas da sociedade para atender as necessidades dos novos clientes e seus “recursos carimbados”14. Houve as que mesclaram interesses e encontraram pontos de convergência. Outras resolveram testar a resistência à exaustão. Para o consultor Hans-Jürgen Fiege (conhecido no Ceará como João Alemão), depois que as ONGs ultrapassaram os limites dos movimentos sociais houve uma verdadeira inflação conceitual.

“Hoje, pelo menos na mídia, tudo é ONG (…) Muitas vezes até entidades
que são meras crias da área governamental ou projetos de um dono só
(…) Podemos afirmar que o papel como agente democrático de
desenvolvimento social, econômico e político de caráter público junto com
o princípio e autonomia em relação aos outros atores de
campo político (poder público, partidos, movimentos sociais) caracteriza
bem um certo denominador comum na auto-definição de ONGs, enquanto
outros aspectos são controvertidos e se encontram em plena mudança
(…) Ao mesmo tempo que busquem a sua identidade na dialética entre
preservar e inovar é inegável que as ONGs cresceram de fato e que a sua
articulação em redes e fóruns e o seu diálogo com outros atores sociais
públicos e privados tem aumentado a cada ano”

A sinalização de que haveria dinheiro para empreendedorismos sociais e ambientais terceirizados, na perspectiva da geração de trabalho e renda, gerou uma proliferação de organizações não-governamentais, com as mais variadas bandeiras, reduzindo a concentração do teor dos princípios instituidores desse modelo de ação da sociedade civil. A convicção cedeu lugar à conveniência e a retórica da inclusão social ganhou unanimidade. Em termos de foco pode-se dizer que essa concordância generalizada é desejável, embora no que diz respeito à transformação concreta da situação de desigualdade social tudo isso mais pareça com uma recomposição de comando do estado e do mercado na condução da sociedade.

O estímulo à criação de OSCIP (Organização da Sociedade Civil de Interesse Público) foi uma das maneiras que o Governo Fernando Henrique encontrou para manter o domínio da situação nas esferas não-governamentais, inclusive com relação aos recursos externos destinados as ONGs. Todos os empreendimentos de caráter particular, declarados como sem fins lucrativos, foram abrigados sob um guarda-chuva institucionalizado como Terceiro Setor. Diante da divisão alcançada pela mistura de diferentes naturezas políticas, sociais e culturais, as ONGs tomaram um choque de sensação de impotência. Esse estratagema considerou a vulnerabilidade conceitual do termo ONG para confundir a opinião pública.

O chamado Terceiro Setor é uma espécie de pasteurização dos movimentos organizados de cidadania, como se as ONGs, por terem reinventado a linguagem da emancipação por vias não-oficiais, fossem os germes patogênicos que ameaçam a saúde do Estado Mínimo no processo de transnacionalização da produção de bens e serviços e dos capitais voláteis. A burocracia oficial pariu, assim, um híbrido virtual do público com o privado para a promoção de ações que podem interessar à sociedade civil, desde que a partir da visão dos agentes do Estado e do Mercado. ONGs, OSCIPs, OSCs (Organizações da Sociedade Civil), OBCs (Organizações de Base Comunitária), MSs (Movimentos Sociais), institutos, fundações e associações passaram a ser agrupados não com a inspiração que reza o espírito da lei, mas nos limites das letras do Código Civil, que indica como ponto comum entre elas o fato de hipoteticamente não visarem lucro e supostamente trabalharem com exclusividade para fins públicos.

O receituário da globalização neoliberal determina que além do enxugamento do Estado, o Mercado da periferia deve se comportar de acordo com as regras de competência da matriz. Neste caso, não vale a competência comprovada das ONGs na promoção de transformações sociais. O princípio de negócio e de trabalho profissional agregado à participação no Terceiro Setor começou a ser difundido racionalmente no Brasil a partir da segunda metade dos anos 80 com a chegada da Ashoka ao país. Uma entidade que dissemina a partir dos EUA vários interesses internacionais na manutenção dos fellows, como são classificados os empreendedores sociais incentivados, provocando uma verdadeira invasão da cultura do mercado na instância da sociedade civil.

“Empresários bem-sucedidos são justamente aqueles que foram capazes
de entender as necessidades de seu público-alvo, muitas vezes,
intuitivamente. O ideal seria utilizar uma abordagem mais estruturada que
garanta ao empreendedor social que seu negócio possa realmente atrair
o público-alvo. Nesse caso, três passos são particularmente úteis: pense
como um consumidor, observe um consumidor e pergunte a um
consumidor”

Com o avanço da estratégia de Responsabilidade Social, do Investimento Social Privado e da política do Estado Mínimo, ganhou corpo o estímulo ao voluntariado supostamente apolítico. A redução forçada do tamanho do Estado foi na realidade uma transferência de responsabilidades e de força de trabalho para a iniciativa privada e para as organizações da sociedade civil. Inspiradas no lema de que “o voluntariado organizado é a base do Terceiro Setor”, foram criadas entidades, a exemplo da Parceiros Voluntários do Rio Grande do Sul17para atuarem travestidos de cultura da participação espontânea em ritos de solidariedade.

Necrofagia da exclusão
Tem sido cada vez mais crescente o número de empresas que apelam para as ditas vantagens filantrópicas, na tentativa de serem percebidas como organizações com responsabilidade social. Destituídas, muitas vezes, de um maior aprofundamento da onda em que estão metidas muitas dessas organizações acabam confundindo situações emergenciais com regularidade desejada, contribuindo para que a exceção vire regra. O uso derrisório das ferramentas de marketing, com o intuito de beneficiar imagens corporativas e de conquistar a simpatia da população com base no infortúnio da grande massa de excluídos, é uma prática temerária e condenável.

Sem dúvida que muitas das campanhas ditas de “solidariedade” agregam sedativos evanescentes em focos sociais marginalizados, embora a prova dos nove do imediatismo resulte na sofisticação da dependência. Traídas pela carência, as pessoas acabam esquecendo que solidariedade pressupõe uma ligação recíproca com autonomia das partes. Em períodos de necessidade extrema, fica difícil pensar se o “bom samaritano” não é, na verdade, um cleptomaníaco lavando dinheiro em ação de graças. Marketing quer dizer troca, portanto, ao ser utilizado com vista a retorno, mesmo institucional, em cima da pobreza, é uma farsa técnica e ética que rompe com as regras mais elementares da polidez humana e empurra mais e mais os excluídos à condição de pedintes, aviltando reservas sociais de indignação.

A caridade sempre foi praticada por razões compensatórias de remorsos dolosos e culposos, embora sirva de meio salutar aos que intuitivamente elevam o espírito fazendo pequenas diferenças. Ela está na gênese do assistencialismo. Sobre a sua evocação, pouca chance há para a construção da cidadania. Ajudar é o verbo mágico da submissão atávica. Não existe nada de novo na prática de benesse filantrópica e assistencialista. Que o digam os clubes de serviços, a maçonaria e as primeiras-damas. A mobilização da sociedade para a superação das condições emergenciais presas ao plano escorregadio do subdesenvolvimento crônico precisa ser estimulada fora do âmbito da esmola. Ao invés de ficarem com pirotecnias evasivas, para causar boa impressão com a miséria dos outros, os promotores dessas empreitadas poderiam ganhar bem mais, no plano do equilíbrio coletivo, pagando impostos, cumprindo com as suas obrigações de respeitar a qualidade de vida, dando impulso a empregabilidade e melhorando as condições de renda da população.

A Constitutição Federal, de 1988, tenta romper com a acepção de necessitado, contida no conceito de assistência social, alterando-a para seguridade. A idéia é boa e sinaliza para a universalização dos direitos sociais, porém não consegue nem ser absorvida nem encontrar repercussão transformadora. O acesso à educação, saúde, terra, moradia, transporte, alimentação, lazer, entretenimento, bens culturais e informação de qualidade ainda é visto como um perigo bem maior do que o estopim que se mantém aceso para a crescente marginalidade explosiva. O jornalista Eduardo Martins Neto, editor da revista Marketing Cultural Online, reconhece os avanços importantes ocorridos no Mercado no que diz respeito à compreensão dos direitos dos consumidores e na necessidade de investimentos empresariais na recuperação dos efeitos causados pelo desprezo aos direitos fundamentais do cidadão, mas critica com veemência as empresas limitadas a se agarrarem nos benefícios tributários para aparecer como amigas e cidadãs:
 

“Dezenas de empresas investem milhões em projetos socioculturais, e se
dizem “empresas cidadãs”. O termo virou moda – toda empresa é
“cidadã”. Só que a maior parte desse dinheiro é proveniente dos impostos
que ela deixou de recolher por conta das leis de incentivo. Quer dizer: o
dinheiro que não é mais dela está servindo para apoiar projetos sociais, o
que é muito bom para os
Projetos, mas amanhã não será tão bom para a empresa. Porque mais
cedo ou mais tarde o cidadão vai perceber que aquela companhia que se
arvora de empresa “cidadã” e distribui folhetos, publica anúncios e recheia
seu site com as iniciativas sociais que apóia, está fazendo, na verdade,
marketing – marketing com o social. E com dinheiro alheio (…) E mesmo
aquelas que não utilizam dinheiro público participam do engodo, pois
quem faz marketing com o social não tem responsabilidade social.”
 

Talvez a reflexão de Eduardo Martins Neto careça apenas de uma pequena observação quando ele se refere aos impostos como “um dinheiro que não é mais” da empresa. Existem inúmeros questionamentos que podem e devem ser feitos com relação aos critérios e usos de recursos públicos retidos de tributos com aplicação facultada ao Mercado. Entretanto, ninguém pode deixar de reconhecer que ele só existe porque existe uma empresa que é produtiva, gera lucro e imposto devido. A falta de discussão sobre esse assunto tem sido um dos maiores problemas na aplicação da Lei de Incentivo ao esporte, à cultura, à educação e a projetos sociais. No ato de convencimento do patrocínio, o proponente muitas vezes alega que o dinheiro a ser repassado “não é mais da empresa” e o responsável pela liberação do recurso normalmente raciocina do mesmo jeito. O resultado desse encontro de ignorâncias é que o recurso público salta ao vento.

Caso tão grave quanto é o da doação do excedente da sonegação, garantindo a sujeição forçada pela privação e segurando as rédeas do controle da criatividade e da capacidade de produzir das pessoas. Mas esse negócio de, por um lado oculto, ser responsável pela fomentação da miséria e, por outro, aparecer com riso de manequim em coloridas peças de publicidade e em fastidiosa propaganda de pura necrofagia social.
 

Estado de bem-estar
A sustentação do estado de bem-estar passou a depender de novas alianças e a produzir a necessidade de uma gestão compartilhada entre os poderes públicos, a iniciativa privada e a sociedade civil. Para discutir soluções efetivas de desconcentração de renda e de equalização de poder não são tantos os interessados, mas para dizer que precisam socializar os problemas sociais com as cidadãs e os cidadãos brasileiros o Estado e o Mercado aparecem incontáveis atores com desenvoltura e eloqüência.

Na opinião de Carles Riera, diretor da Desenvolupament Communitari, ONG sediada em Barcelona, na Espanha, essa busca de parceria é sincera, positiva e construtiva, mas muitas vezes não passa de uma maneira de se livrar do problema e transferi-lo para a sociedade civil, com inspiração no clássico discurso liberal de que os problemas sociais são de responsabilidade da sociedade. “Há aí, então, um jogo tanto perigoso em relação à sociedade civil e ao voluntariado, na medida em que pode significar transferir a iniciativa social inclusa na iniciativa privada responsabilidades que deveriam ser da administração pública”19. Esse jogo torna-se mais arriscado ainda quando muitas empresas assumem como peça de marketing resultado de ações sociais de caráter emergencial que se envolvem sem, contudo, partir de uma base defensável da sua razão de ser.

Essa engenharia, capaz de emular a um só tempo tantas atitudes de uma sociedade aprendiz, provocou uma crise de comportamento nas pessoas no âmbito das ONGs e suas crenças alternativas. Muitas delas passaram a reproduzir posturas de competição desleal, na disputa por “clientela” social, verbas, temas e espaços geográficos, e a usar situações de pobreza como garantia de nichos de poder e do próprio emprego, contradizendo frontalmente o conceito que as originou.

Ao invés de dar seqüência ao enfrentamento do ideário político-cultural propalado pelas corporações transnacionais, passou-se a gastar energia em função de casualidades provocadas pelas ofertas de apoio das fundações dessas mesmas corporações e de agências internacionais como o Banco Mundial, que passaram a determinar prioridades de atuação. Mais do que discutir se deve ou não aceitar esse tipo de contribuição, a questão está no desvirtuamento do foco da ação. Não se trata de reserva de espaço, o que acontece é que as ONGs, enquanto instrumento político da sociedade civil organizada, devem ter as suas próprias pautas compartilhadas. O filósofo Paulo Arantes analisa que
 

“O fato é que também existe um mercado atraente para as iniciativas
cidadãs. Ocorre simplesmente que a mais estrita observância da cláusula
sem fins-lucrativos não é uma barreira à entrada no mundo dos negócios,
podendo até representar uma senha privilegiada de ingresso (…) De sorte
que nem sempre é fácil perceber onde termina a utopia republicana e
principia um empreendimento tocado à imagem e semelhança do mundo
dos negócios”
 

A concorrência entre as ONGs é citada por Chris Roche, coordenador das atividades de programa dentro do Departamento de Políticas da agência de cooperação inglesa Oxfam. A crescente pressão exercida sobre as organizações não-governamentais para que demonstrem os resultados e os impactos concretos de suas ações tem recebido fortes aliados de estresse com o ceticismo revelado cada vez mais pela cooperação internacional em relação ao valor dos aportes financeiros que propiciam ao trabalho das ONGs, gerando um desgastante círculo vicioso. Roche fala das disfunções entre apoiadores e apoiados que, segundo ele, “tende a perpetuar a velha e cansada imagem da ajuda indo do doador para a vítima, e uma visão do desenvolvimento como algo que é feito para outras pessoas, para pessoas que estão muito distantes”. Correto ou errado, esse sentimento permeia as conversas dos financiadores internacionais.

O que ou em quê o dinheiro enviado tem alterado a vida das pessoas nas regiões de atuação das ONGs é uma indagação difícil de responder, mas existe e quer respostas. Atribuir mudanças a um determinado conjunto de ações é sempre um risco. Sabe-se que a intensidade da participação tem sido um dos pontos considerados importantes pelas agências bi e multilaterais, entretanto a avaliação da qualidade da participação é, na análise de Chris Roche, particularmente problemática.
 

“Para que o círculo atinja quantidade de movimento suficiente, uma série
de fatos deve acontecer simultaneamente. As lições a partir dos estudos
de caso indicam que isso envolverá não apenas o desenvolvimento e o
compartilhar de novas ferramentas e métodos de avaliação de impacto,
mas também o aumento de maiores estratégias para o aprendizado
institucional. Todavia, isso só fará uma diferença se a atual concorrência
por recursos, pessoal e idéias entre as ONGs e outros atores –
notadamente o Estado – for reestruturada em alianças criativas e
estratégicas” 

Todas essas ocorrências influenciaram para que as organizações não-governamentais de consistência política seguissem meio à deriva e muitas deixassem de existir ou reduzissem significativamente áreas atuação. Apesar do funcionamento da Associação Brasileira de ONGs – Abong, desde o início dos anos 90, a indefinição do que é ou não uma ONG acabou se tornando mais importante do que a discussão do papel político das organizações nãogovernamentais. A tentação cartesiana da burocratização é sempre mais forte do que a conceituação como efeito das ações. O que é ou não uma ONG é o resultado do que fazem as ONGs, não há como ser diferente. Se o Brasil ficou cheio de organizações da sociedade civil sem fins lucrativos, muitas delas criadas por oportunistas de plantão, não é uma carta de princípios que vai convencer às pessoas o que é joio e o que é trigo.
 

Estadofobia reversa
Cabe ressalvar que a frágil compreensão da razão de ser das instituições no Brasil sempre gerou uma confusão entre o que é Estado e o que é Governo. Essa simbiose, resultante da cultura colonial, continua impregnada na mentalidade das pessoas que quando querem atacar os governos, centram fogo no Estado indistintamente. E vice-versa. Em ambas as situações a sociedade organizada perde força, porque sai do plano de categoria política para uma situação de dependência maniqueísta.

A relação das ONGs com um governo que ajudaram a eleger é um outro ponto de embaraço na vida dessas organizações. O papel político que desempenham requer que elas ajam com autonomia para poderem seguir com a fomentação da consciência crítica. O governo Lula precisa de pressão qualificada da sociedade civil para poder legitimar suas ações. Por isso as ONGs não podem ser circunstancialmente governamentais. É um risco que não podem correr. As tentativas de alteração da agenda nacional, do plano econômico para a questão da fome e a criação de um Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social – CDES, por exemplo, demonstram o esforço do governo de estar perto do espectro que o originou. São atitudes que geram sinergia e isso é bom para a gestão compartilhada, no sentido de “conexão entre agentes autônomos complementares que cooperam para atingir objetivos convergentes”.

A disposição do governo brasileiro de fortalecer os laços com os demais países latinoamericanos, com a finalidade de formação de blocos comerciais e políticos, encontra na ação das ONGs muitos paralelos que poderão contribuir no processo. O mesmo desenho do ponto de fuga das perspectivas da maioria das organizações não-governamentais e do “Brasil, um País de Todos”, pode ser notado na disposição de estreitamento da relação política, econômica e cultural com a União Européia e com alguns países dos outros continentes, reduzindo a dependência dos EUA. No trabalho dos pesquisadores Roberto Sainz e Oscar Chacón, realizado com organizações não-governamentais da Bolívia, Brasil, Equador, El Salvador, Guatemala, Honduras, Nicarágua, Paraguai e Peru, é feita a constatação das possibilidades de relacionamento das ONGs desses países. 

“Es importante reconocer que existe em los países analizados, una amplia
similitude em los intereses y temáticas abordadas por las organizaciones
no gubernamentales. Esta es una fortaleza que debe ser aprovechada
para consolidar mayores vínculos y oportunidades de trabajo conjunto que
logren un mejor aporte hacia el desarrollo latinoamericano”. 

As ONGs brasileiras precisam azeitar a ligação com as organizações afins existentes nos países latinoamericanos, mas necessitam simultaneamente acelerar a aproximação interna e não deixar de manter estreita aproximação com as agências de estudos e de financiamentos com as quais mantêm relações de cooperação. Para conseguirem manter a imagem que construíram com suor, risco, coragem, determinação e resultados concretos, não há mais como deixar de divulgar os efeitos das suas ações. Se as pessoas tivessem acesso a pelo menos uma parte do tanto que as ONGs têm feito pelo País, estaria resolvido o problema da crise de identidade e a opinião pública passaria a ser um escudo especial em defesa dessas organizações.

O certo é que enquanto o debate trafega entre o bem e o mal, organizações internacionais como o WWF – Fundo Mundial para a Vida Selvagem/Natureza (Wold Wildlife Fund, mais recentemente World Fund for Nature), entidade suíça com foco em ações ambientais, e a estadunidense Care (Cuidar), de ações humanitárias, intensificam a propaganda na televisão pedindo doação para os projetos sociais que desenvolvem. Sem qualquer juízo de valor a respeito dos trabalhos dessas organizações, mais uma vez nós brasileiros entregamos nossos recursos para entidades estrangeiras dizerem o que devemos fazer enquanto sociedade civil em relação à causa ecológica, ambiental e social. No Brasil, quem melhor faz essa arrecadação para apoios a projetos ligados à infância é a Rede Globo de Televisão, que promove o Criança Esperança, por um bom tempo em parceria com o Unicef – Fundo das Nações Unidas para a Infância, e a partir de 2004. com a Unesco, organização das Nações Unidas para a educação, a ciência e a cultura. O mega-show é realizado há duas décadas, tendo a frente o humorista cearense Renato Aragão, o Didi dos Trapalhões.

As pessoas precisam saber que as ONGs lutaram e participaram da evolução política de um país, na qual se insere a conquista da eleição de um presidente democrático e popular. Chegaram portanto aos jardins de um lugar que sonharam mas que nunca existiu, que tiveram que inventar por força da ausência de liberdade, dos direitos civis, políticos, sociais e do estado de bem-estar. Como todo clandestino anistiado, estão retornando para casa, mas não conseguem identificar exatamente qual delas é um lar. Como sobreviver no não-lugar é um desafio estimulante.

Para um tipo de organização que antes negava o governo e agora é ou pode ser governo a sensação é de não está no lugar imaginado. E realmente as ONGs originais vivem essa indagação. Na teoria da curva do crescimento a eleição de um presidente da república com as características do Lula pode ser resumida como um salto para o início de um novo processo e não como o alcance da utopia. É como se começasse tudo de novo a partir de um novo ponto. Daí a necessidade de prudência e ao mesmo tempo a grande oportunidade de redesenhar o futuro desejado com maturidade e visão orgânica de complementaridade.

A situação é complexa porque um governo nascido da sociedade civil precisa mesmo contar em sua estrutura com pessoas saídas dessas e de outras organizações da sociedade civil, o que provoca um certo esvaziamento nessas esferas de combate, mexendo bruscamente na concepção de mundo de muitos dos seus militantes. O dilema que atordoa muitas cabeças é definir se é governo ou ONG. O espírito estadofobista certamente ainda ronda o pensamento de alguns líderes de sindicatos, dos movimentos sociais, da igreja progressista que passaram a atuar no Estado.

Mais preocupante é o fato de que o governo Lula não tem governadores, não tem prefeitos e não têm parlamentares afinados com o projeto do Partido dos Trabalhadores – PT – em número suficiente para determinar os rumos do país. É um governo de coalizão que corre o perigo de ser tragado pelas próprias forças conservadoras que o integram. Por isso precisa da sociedade civil organizada para ter a capilaridade necessária à comunicação com a população brasileira. O governo necessita dos sulcos abertos pela rede de ONGs. Como fazer isso sem transformá-las em braços oficiais é o enigma que será decifrado com o tempo. É uma questão de consciência e de coerência encontrada com clareza em argumentos como o do coordenador do Ibase:
 

“Manter a postura ´vigilante´ é hoje uma preocupação das ONGs, que
reconhecem o risco de haver uma complacência com o governo. ´É difícil
para muitos de nós fazer uma crítica ao PT [Partido dos Trabalhadores],
mas esse é o nosso papel´, diz Candido Grybowsky, coordenador do
Ibase, que criticou a provável ida do presidente Lula ao Fórum Econômico
Mundial, em Davos (Suíça). Grybowsky está entre os que temem uma
´cooptação´ das ONGs pelo governo, mas há quem acredite que os
movimentos da sociedade civil estarão mais alertas agora do que no
governo FHC [Fernando Henrique Cardoso]”. 

Imagem desvirtuada
No governo de Fernando Collor de Mello (1990 – 1994) iniciou-se um arrocho na tentativa de controlar os recursos das fontes de financiamentos internacionais destinados às organizações não-governamentais. Nos oito anos seguintes, dois mandatos de FHC, o cerco foi competentemente apertado com o objetivo de tutelar as ONGs. Ao passo que eram feitos ensaios de exame minucioso da atividade, havia uma enxurrada de organizações, juridicamente semelhantes, que corria a solta pelo País, das quais pouco se queria sequer saber se eram bancadas ou não com a finalidade de labagem de dinheiro. Filantropia com dinheiro de “caixa dois” para construção de imagem institucional é uma hipótese perfeitamente considerável. O certo é que as políticas públicas e as empresas adotaram o modelo das ONGs, mas não adotaram o que as ONGs representam. Esta não é, contanto, uma realidade exclusiva do Brasil.
 

“Las reformas del Estado han traído consigo la privatización de los
servicios básicos (entre ellos, salud, educación, saneamiento)
derivándose, en este marco, una cantidad significativa de recursos a las
ONGs, bajo diversas modalidades. Asimismo, como consecuencia de la
puesta en marcha de las políticas de ajuste y sus impactos negativos
sobre la población más pobre, se han llevado a cabo en toda la región
grandes programas compensatorios, generalmente vía Fondos de
Inversión Social, que han dispuesto de cantidades significativas de
recursos que han sido canalizados a programas y proyectos, a través de
la subcontratación de servicios con empresas privadas, municipios y
ONGs”. 

Sem dúvida que as ONGs brasileiras tendem a ampliar a interação com o Estado e com o Mercado sem serem cooptadas. O Brasil tem muitas experiências de gestão compartilhada do interesse comum e coletivo. E não existe gestão compartilhada sem a autonomia dos seus agentes de desenvolvimento. A clareza e a eficiência do novo papel político das ONGs passa pela compreensão do público e do privado. Na confusão criada para descaracterizar a angulação política dessas organizações da sociedade civil de caráter público, muitas pessoas se aproximam das ONGs como quem procura uma entidade assistencial. Boa parte dos universitários e recém-formados que procuram as ONGs é para fazer complementação salarial e não por compromisso com qualquer causa coletiva.

No Ceará nasceu em 1991 uma experiência inusitada de mobilização social conhecida como Pacto de Cooperação. Essa ação inovou por conseguir agregar os mais diversificados setores e segmentos locais tendo no diálogo a sua mais expressiva força de atração dos contrários para a administração dos pontos de convergência entre eles. Na sua gênese, limitava-se ao Estado, à iniciativa privada e à convicção de que “Com confiança, o interesse comum une diferente” e que “ Tudo acontece num sistema de inter-relações”26. Em dez anos, essa espécie de ONG sem estatuto, sem sede e sem diretoria ampliou seu raio de ação pelos mais diversos segmentos da sociedade cearense, tendo inclusive influenciado na criação de organizações afins em vários estados brasileiros. O segredo dessa alquimia social estava na combinação dos elementos da Informalidade, Cooperação, Virtualidade, Pluralidade e Catálise, garantidos pela ética da autonomia, convencionada ao longo dos anos no ambiente de encontros pelo interesse comum. 

“O contato da combinação desses cinco elementos com o princípio ativo
da cidadania, que é a participação, foi criando uma mobilização em redes
de espontaneidades. Cada instância pode nascer e desaparecer sem
cobranças de sucesso, conforme o grau de comprometimento dos que se
dispõem a abrir essas frentes com os nomes de fóruns e pactos”.
 

Entretanto, no auge da sua expansão, os agentes mais astutos do Mercado e do Estado assaltaram a idéia e descontruíram toda a essência da rede do Pacto transformando-o em trampolim para obtenção de cargos no poder público e vantagens privadas, restando apenas o aspecto da produção de debates. O poder de recomposição do tecido da cultura da vantagem é um fenômeno do comportamento humano que denota primitivos requintes de crueldade. Os anticorpos das condições privilegiadas agem rápido. A resposta ao estímulo que os movimentos sociais e as ONGs prepararam como ambiência ao desenvolvimento da economia solidária e das cooperativas de crédito popular chega par a par com os instantes inaugurais do processo. A onda das terceirizações vai migrando para as quarteirizações e nesse tipo de cascata de intermediários geralmente os bons projetos perdem a essência. O que existe de cultura do diálogo sistemático entre os governos, o mercado e a sociedade civil organizada no Ceará deve em muito a existência do Pacto de Cooperação. As ONGs sempre foram acusadas de participar pouco fora do âmbito das suas áreas de atuação e interesse. As entidades da iniciativa privada e os poderes públicos aproveitaram bem essa tecnologia de relacionamento, transmutando-a, contudo, a uma nova ética da discussão calcada no uso do debate como fim e não como meio.

Representantes do Estado e do Mercado promovem debates e mais debates, mas o que é debatido não parece ter consecução. Salvo quando a discussão é usada para legitimar uma decisão previamente tomada. A prática do debate no Ceará, com as devidas exceções, está mais próxima de sondagens para conhecimento das condições de temperatura e pressão do motor político da sociedade. Desvirtuação que termina por alimentar a desconfiança e estimular a descrença no diálogo. 

Nas borbulhas do mundo
O momento mundial é de efervescência. A doutrina estadunidense assume a deliberação de se auto-proclamar o governo e a polícia do mundo, numa desproporção que desconsiderou a posição da Organização das Nações Unidas – ONU – na sua ânsia de invadir o Iraque em 20 de março de 2003. Invasão realizada em parceria com a Grã-Bretanha, país com o qual detém a liderança absoluta do mercado mundial de armas. Além deste, dois outros marcos delimitam a crise de alinhamento do poder global: a derrubada das Torres Gêmeas de Nova Iorque, em 11 de setembro de 2002, por grupos terroristas em reação à política neoliberal e a construção do Muro de Israel, iniciada nos primeiros dias de julho de 2003, com o intento de segregar fisicamente as colônias palestinas.

Dentro dos Estados Unidos, o governo norte-americano vem exigindo que as entidades que recebem verbas federais façam propaganda oficial. “Pelas mãos do presidente George W. Bush, Tio Sam está agora se intrometendo em organizações não-governamentais (ONGs) e em grupos religiosos, intimando-os a acatar exigências do governo se quiserem continuar recebendo verbas federais para executar os seus serviços”28. A notícia dessa explicitação retrata bem o temperamento do chefe do país mais poderoso do planeta desde o final da Grande Guerra nos idos da quarta década do século passado. Concomitante com essas medidas do despotismo ianque e baseada nas estatísticas do seu programa para o desenvolvimento – PNUD – que aponta significativos retrocessos na qualidade de vida mundial, a ONU altera o seu canal de relações, antes afeito à exclusividade com as representações oficiais. Os laços que vinham sendo ampliados com as organizações não-governamentais, por meio de ações como o Programa de Voluntários das Nações Unidas – UNV – tendo como simpatia comum o combate à pobreza, passa a dirigir sua força de comunicação coercitiva para o lançamento de “propostas que fortaleçam o setor empresarial dos países em desenvolvimento (…) em ações que estimulem o surgimento de pequenos e médios empresários”.

Todas as peças do tabuleiro político internacional estão em franca agitação. Como em todo jogo, elas são mexidas em funções de ataque e de defesa. Jorge Eduardo S. Durão, secretário geral da Abong e diretor da Fase, entende as implicações dos movimentos contrahegemônicos como um dos fatores do contexto geopolítico universal que afetam as tendências da cooperação internacional. 

“Houve uma mudança significativa na situação internacional nesta última
década, a saber: apesar de permanecer o quadro de unipolaridade, com
uma única superpotência dominando o mundo – Estados Unidos (EUA) -,
começou a se romper a situação de completa hegemonia do pensamento
único que acompanhou a globalização neoliberal. Seattle, Gênova e o
Fórum Social Mundial de Porto Alegre marcam a emergência de um
movimento social contra-hegemônico sobre o sistema de cooperação
hegemonizado pelos governos do Norte (…) Uma conseqüência prática
crucial disso é que, tendencialmente, as alianças políticas que precisam
ser feitas para enfrentarmos os desafios da nossa agenda política própria
– em sintonia com as críticas à globalização, que definem a pauta do
Fórum Social Mundial – não coincidem exatamente com as relações
tradicionais de cooperação (…) Os grandes temas da agenda atual da
cooperação internacional – comércio e integração econômica, direitos
humanos (Dhesc), pobreza – são perpassados por conflitos diversos,
relacionados com as questões das soberanias, da globalização, dos
imperialismos e refletem os limites da capacidade de crítica e oposição
das agências em relação às políticas dominantes”.

O reflexo dessa movimentação que atinge a cooperação internacional oficial e a nãogovernamental demonstra que não são apenas as ONGs que estão em crise de identidade. O mundo está em estágio de descompensação e confuso. A paz, a biodiversidade e a dignidade dos povos estão comprometidas. Oriente e Ocidente, Norte e Sul, são paradigmas carcomidos pelo obsoletismo da própria significação. As estratégias de equilíbrio e de desequilíbrio acontecem com simultaneidade e, dessa correlação de forças e poderes, sairá o desenho da nova geografia humana e política universal.

Conclusão
As ONGs cumpriram um papel de especial importância para a redemocratização brasileira, mas para continuarem influindo no aperfeiçoamento sócio-político e cultural do país, bem como participando de uma política contra-hegemônica, precisam ajustar melhor os padrões éticos que diferenciam as suas ações e dar visibilidade a eles. O cumprimento desse desafio transformador carece, portanto, de equalização pública no entendimento da missão das ONGs entre si, na relação com os poderes públicos e com a própria sociedade civil, de modo que possam manter o nível de confiança e de competência mobilizadora alcançado pelo trabalho daquelas que se arriscaram a ser pioneiras quando o país ainda se encontrava submetido à ditadura militar. E, evidentemente, de todas as que vieram depois impregnadas de vontade de interferir na produção de diferenças redutoras das desigualdades.

O que se convencionou chamar de crise de identidade das ONGs é uma decorrência natural da natureza dessas organizações políticas da sociedade civil. Aconteceu, em relação aos movimentos sociais, quando foram criadas; aconteceu nos períodos de estadofobia, por conta da ditadura militar; aconteceu em forma de preconceito mútuo no princípio do relacionamento entre organizações com e sem fins lucrativos; aconteceu quando a onda da globalização neoliberal reduziu o Estado, transferindo responsabilidades essenciais dos poderes públicos para a iniciativa privada e para as associações da sociedade civil; aconteceu com a campanha de diluição da imagem política das organizações não-governamentais, com a instituição do chamado Terceiro Setor; e está acontecendo por conseqüência manifesta da simpatia das pessoas que fazem as ONGs pelo governo que ajudaram a eleger. Existe, portanto, todo um histórico de conquistas na vivência das organizações não-governamentais. São exemplos de superações que foram temperando a fibra da cidadania para que os brasileiros pudessem chegar à plataforma de lançamento de um novo País, que está sendo construído pelo mais difícil, porém o mais duradouros dos caminhos, que é o diálogo.

O povo brasileiro elegeu em 2002 um presidente fora dos arranjos das elites tradicionais e o novo cenário requer uma ampla discussão sobre o papel das organizações não-governamentais, com a finalidade de intensificar e tornar cada vez mais eficaz a sua força participativa. O Brasil vive os primeiros passos de um governo radicalmente associado às manifestações da sociedade civil e no novo cenário o papel das ONGs ainda é uma incógnita. O fortalecimento das redes e fóruns de organizações nãogovernamentais, em articulação pelo país, talvez encontre respostas para o novo desafio. A sociedade precisa desse instrumento que emana da sua própria vontade civilizatória e que será tão mais importante quanto for a popularização da clareza da sua razão de ser. A defesa da tese de que as ONGs devem perseguir o papel de organizações políticas com olhos da sociedade civil não é condição para a existência ou não das organizações filantrópicas e assistencialistas. A situação de desigualdade do País não pode esnobar ações emergenciais e paliativas, mas também não é tão periclitante a ponto de deixar de lado todo um leque de ações transformadoras que transitam do fortalecimento às manifestações cultura aos cuidados para a consolidação da socioeconomia solidária. Para isso, o Brasil precisa do trabalho integrado das ONGs, do Estado, do Mercado e das entidades do Terceiro Setor.

A bem da verdade, só existem duas situações de dificuldade real no âmbito das ONGs e nenhuma é essencialmente de identidade: existe uma complicação financeira, ocasionada pelos efeitos do realinhamento geopolítico mundial, e um ponto crítico proporcionado pela falta de clareza dos padrões éticos fundadores dessas organizações da sociedade civil. Ambas têm corroborado significativamente para a existência de uma grande crise na pulsão de vida das ONGs, que é a competição sem parâmetros. Este sim é um grande problema multiplicador de desconfiança, inibidor da cooperação e do companheirismo civil, condições indispensáveis para a formação da teia do grande sonho de participação da construção de um país justo, próspero e de gente feliz. O psicoterapeuta, ex-líder estudantil e animador de processos de gestão compartilhada, João de Paula Monteiro, tem razões e argumentos para acreditar que é possível ser eficiente sem perder o senso da cooperação.
 

“Um problema retarda essa tomada de consciência. É a propaganda da
ideologia da competição. Feita por todos os meios, em todos os períodos
e em todos os lugares, ela martela todos os sentidos das pessoas,
procurando induzi-las a competir em tudo. A permanente exaltação da
competitividade ainda atordoa e confunde muita gente. Mas a propaganda
enganosa produzida pela obsessão competitiva não será capaz de
embotar mentes ou anestesiar corações por todo o tempo. Será cada vez
maior o número de pessoas a romper com as ilusões que lhes dificultam
perceber a realidade do nosso planeta e a agir em conformidade com
ela”.

Dentro da sua função política as ONGs devem continuar trabalhando para o restabelecimento do sentimento de comunidade, através da influência na sedimentação de uma cultura política que fortaleça a sociedade civil, a fim de que seja estabelecido o equilíbrio de poder e força na relação com o Estado e o Mercado. Para isso acontecer, a sociedade civil organizada precisa se posicionar como categoria política, com autonomia e instrumentos mobilizadores. Já foram muitos os avanços nessa trajetória de conquistas e não há razão para capitular na hora do salto democrático experimentado pelo Brasil no início deste século, um país que é um mercado comum, com uma só língua e uma expressiva população futurista no brio da sua miscigenação.

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