Dona Ciça do Barro Cru
Artigo publicado no Jornal O Povo
13 de Outubro de 1986 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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O ser humano tem desejos tão complexos e diferentes quanto a própria alma e formação cultural de cada indivíduo. Ter um trabalho reconhecido e divulgado internacionalmente é o anseio de muitos artistas que amealhados ou não as estruturas de “marketing” procuram atingir o tão propalado sucesso. A ceramista popular juazeirense, Cícero Maria de Araújo, 71 anos, apesar de ser conhecida em todo o País e no Exterior, ao contrário das aspirações comumente encontradas entre os que fazem arte, tem como vontade maior possuir uma radiola, uma televisão, comer carne com maior freqüência e um dia conhecer Fortaleza. 

Dona Ciça do Barro Cru, como é chamada pelos pesquisadores, já foi tema de documentário para o cinema e televisão e ano passado teve uma de suas máscaras de barro como capa do livro “Artistas da Cerâmica Brasileira” editado em português, inglês e alemão pelo projeto “A arte contemporânea brasileira” da Volkswagen no Brasil. A publicação reúne 42 ceramistas, eruditos e populares, que apresentam cerca de 160 trabalhos. Entre os que fazem parte do livro, mestre Vitalino, Aldemir Martins e Zé Caboclo, além de Dona Ciça que sequer recebeu um exemplar como lembrança.

QUEBRANTE

O universo de Dona Ciça é imensamente místico como o de todo bom caririense. Na sala de sua casa, cheia de rachaduras e insegurança, ela mantém um rico santuário onde normalmente realiza suas preces e orações. Algumas gaiolas com graúnas, cancãos, canários, golinhas e periquitos harmonizam o ambiente exótico de seu lar, que carinhosamente divide com o marido Januário Rozeno, um simpático velhinho de idade incerta e parcas condições de trabalho. 

Nascida em São José , uma localidade entre Crato e Juazeiro, 580 quilômetros de Fortaleza, Dona Ciça era adolescente quando iniciou seu trabalho com barro. “Fui influenciada por meu Senhor, o Pai do Céu”. Produzindo miniaturas de cachorros, cavalos e o que surgisse em sua mente, ela afirma que passou muito tempo para desenvolver uma arte apurada. Hoje ela realiza obras que variam de máscaras a estatuetas, passando por colares, pulseiras, anéis, brincos e outras jóias feitas em barro. Tudo isto com uma dosagem exata de tinta, cola, talco, algodão e até cachaça, em uma mistura que justifica seu domínio e reconhecimento. 

A presença de Dona Ciça nas feiras de Juazeiro e do Crato é algo raro atualmente. Ela se queixa de que as pernas e as costas doem muito. 

“Está com quase dois anos que não saio de casa para negociar minhas coisas. Só trabalho agora por encomenda. Mesmo assim, eu não sei vender as peças, tenho vergonha de pedir o que eu acho que elas valem. Sei que não tem mais nada barato”, assegura a ceramista se mostrando ciente de que é explorada. Seus trabalhos são comercializados pelo Centro de Cultura Popular de Juazeiro, que geralmente lucra cem por cento sobre a quantia cobrada pela criadora. 

“Só vivo dormindo. Acho que estou com algum quebrante. Vou trabalhar e as peças caem das minhas mãos. Às vezes não sei direito o que fazer com meus trabalhos. Dá uma sensação esquisita na gente. Vivo em casa e não tenho nem uma televisão para me divertir. Um dia desses me disseram que eu saí em um programa e não pude ver. Não vou é ficar atocalhando na casa dos outros”, reclama Dona Ciça, lamentando a ausência de encomendas e sua falta de condições para colocar até mesmo alguns ferrolhos nas portas e janelas de sua casa.

XERÉM COM FEIJÃO

A saúde de Dona Ciça não é nada boa. “Minha saúde é tão tanta que só ando me sentando”, ironiza. Ela diz que tem uma “dor de goela” (garganta) permanente e que melhora um pouco quando chupa casca de maribondo, que, por coincidência, é de barro. “Não tenho dinheiro para comprar remédio. Tem dias que me alimento de xerém de milho com feijão. Não tenho vergonha de falar das fraquezas que passo”. Ela nunca recebeu nenhuma ajuda oficial ao seu trabalho e, embora “adoentada”, ressalta que até para comer muitas vezes depende das esmolas que Januário consegue pedindo nas calçadas. 

Diante dessa situação melancólica, Dona Ciça procura passar seu tempo rezando. Seus joelhos são calejados de suportarem o corpo em preces repetidas e cotidianas. “Sofro muito em busca de paz. Rezo para me livrar dos cães e é o que mais topo”. Ela não tem um santo de devoção fixo. “Foi santo, tudo aprecio”. Entre os pedidos que faz na igreja do Padre Cícero ou no santuário particular, um é sempre posto em evidência: “quero ser rica, para poder comprar uma radiola, uma televisão e poder comer carne todo dia e mais nada”.

AMANTE CIUMENTA

O amor é para Dona Ciça o maior dom das pessoas. Ela confessa que sempre gostou de amar. “Sou ciumenta até das folhas. Uma vez troquei uma graúna por um casal de rolinhas e, passados alguns dias, fui comprar minha graúna de novo, dando uma diferença que ainda estou pagando. Tinha ficado com muita saudade e não poderia viver sem ela”. Atualmente ela afirma amar de modo especial apenas seus trabalhos, o “véi” e um prato de carne quanto ‘assenta em um”. Dona Ciça na reclama muito da solidão, mas não nega que tem muita vontade de criar uma menina que possa ajudá-la. “Só não crio uma moleca porque não tenho posse e ninguém me dá”. Seu companheiro de conversa é um gatinho chamado “Jasmim” que ela beija e abraça como se fosse um filho. Januário tem problemas auditivos e ela às vezes prefere conversar baixinho com o “Jasmim”. A lembrança de uma cachorra que morreu recentemente na sai da cabeça de artista. “Sempre lembro da ‘Baleia’. Ela era tão dengosa e sabida…”. 

A casa em que dona Ciça mora foi construída pela Prefeitura de Juazeiro há pouco mais de um ano, mas já está toda se acabando. Muitas telhas quebradas, além das rachaduras, há um batente alto que é saída da cozinha, que está ruindo com toda a estrutura do prédio. As portas e janelas são escoradas com banco e cabos de vassouras. “Vejo a hora um perverso qualquer fazer um mal a mim e ao Januário”, comenta a artista mostrando a total insegurança de sua residência localizada na Rua Joaquim da Rocha, 923, no bairro do Romeirão, em Juazeiro do Norte. 

“Moro nesta casa porque não posso viver em outra. Vivo aqui constrangida. Se eu tivesse qualquer recurso, daria um jeito de me mudar. Existe alguma coisa que maltrate mais uma pessoa do que ela querer fazer uma coisa de seu desejo e não poder?”, interroga Dona Ciça, cheia de dúvidas sobre como poderá se ater no próximo inverno em uma casa cheia de tantas carências estruturais. Ela afirma que não sabe nada de política, entende apenas que é de Deus.

Quando criança, Dona Ciça freqüentou a escola o suficiente apenas para aprender a desenhar seu nome. Mesmo sem compreender algumas letras ela se considera quase alfabetizada e acha “uma ciência” só poder fazer sua própria “graça” e não conseguir escrever o nome de mais ninguém. Nem por isso, assegura, deixou de ser feliz. “Sempre que posso escuto uma música do Luís Gonzaga. Só não gosto daquele que fala em rabo (‘Forró de Cabo a Rabo’). Admiro muito o Rei do Baião, porque ele é o artista da música e eu sou do barro”.