Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno3, pág.3
Quinta-feira, 26 de Janeiro de 2012 – Fortaleza, Ceará, Brasil
Era um dia bonito de sol, céu azul e vento fresco. Dia 13 de janeiro em Montevidéu. Para os apaixonados torcedores uruguaios, dia de clássico do futebol. Os rivais Peñarol e Nacional se enfrentariam no Estádio Centenário, pela semifinal da Copa de Verão 2012, patrocinada pela multinacional mexicana Bimbo. Meus filhos e eu decidimos ir ver a partida. Compramos os ingressos em uma loja da Abitab, empresa líder no mercado de cobranças e pagamentos do país, e ficamos num pé e noutro para chegar a hora do jogo.
Antes, porém, resolvemos ir conhecer o Estádio Centenário e o Museu do Futebol, que fica sob a tribuna Olímpica, arquibancada para a qual havíamos comprado nossas entradas. A velha arena, que sediou a primeira Copa do Mundo, em 1930, vencida pelos uruguaios, está bem bonita, colorida, atraente. O nome Centenário é uma homenagem aos cem anos da primeira constituição uruguaia, promulgada em 1830, depois de um período duro de afirmação nacional, após a independência, no ano de 1811.
O museu é modesto em suas instalações de dois pisos, mas expressa orgulho em todas as suas peças. Claro que a vitória de 2 x 1 sobre o Brasil na conquista do bicampeonato mundial de 1950, no Maracanã, tem um espaço especialíssimo, na parte superior. Fotos, objetos e curiosidades sobre o futebol se confundem às vezes com referências de outros esportes. Em nichos destacados, vimos camisas de craques locais e de desportistas internacionais como Maradona e Pelé, este com a famosa foto da “bicicleta” ao fundo. Uma réplica da Taça Jules Rimet, que por duas vezes esteve em poder do Uruguai, até ser conquistada definitivamente pelo Brasil em 1970, também ilustra as glórias do futebol uruguaio.
O Estádio Centenário foi palco dos jogos da Copa América nos anos de 1942, 1956, 1967 e 1995, todas conquistadas pelo Uruguai. De tanto ver aquele histórico de vibrações, fomos de fato visitar a parte interna do estádio, cujo acesso que está incluído na visitação. Vimos os preparativos para o que eles chamam de mais antigo clássico da América do Sul, considerando que o Peñarol tem 120 anos e o Nacional 112. Olhando para as arquibancadas vazias e para o campo verdinho, ficamos imaginando como tudo aquilo estaria algumas horas depois.
Antes de Peñarol x Nacional, jogaram Palestino (Chile) x San Martin (Peru). A partida saiu empatada em 1 x 1, mas o time chileno ganhou de 6 x 5 nos pênaltis. Vimos somente o segundo tempo desse jogo. Decidimos descansar um pouco no hotel, antes da partida principal, que começou às 22:30, pouco tempo depois do pôr do sol, como acontece naquela região nesse período do ano. Quando entramos, o estádio estava lotado. Talvez tivessem ali uns 60 mil torcedores, para os 76 mil lugares disponíveis. Os meninos haviam comprado a camisa do Peñarol e da Seleção (Celeste), mas resolveram ir com a camisa do Ceará.
Ir ao estádio é sempre uma oportunidade de exercício de grandeza. Quando meu filho Lucas tinha uns quatro anos, levei-o ao estádio Presidente Vargas, em Fortaleza, sem ser em dia de jogo. Quando entramos no campo, ele pisou na grama, abriu os braços e disse admirado: “O mar!”. Estava querendo me dizer do impacto estético que o emocionava. Algo como diz Pedro Ayres de Magalhães, na forma em que seu poema é cantado por Rebeca Matta: “Não é nenhum poema / o que vos vou dizer / Nem sei se vale a pena / Apenas descrever / O mar…”.
Na arquibancada, com torcida, o estádio ganha outras escalas e universalidades. O mar de gente, o mar de vozes, o mar de cores… Em uma entrevista que concedi à jornalista Rozanne Quezado, para a revista “1914”, do Ceará Esporte Clube, chamei de coeducação desportiva o ato de frequentar o estádio com os filhos (“Torcer também é aprender”, p. 74 a 76, edição set/out, 2011). Ficamos no terceiro piso, na parte superior, dentro da “carbonera”, como é conhecida a torcida do Peñarol, que, em suas origens era formada por operários da companhia ferroviária, responsáveis pelo abastecimento de carvão nas caldeiras dos trens.
Enquanto a temperatura baixava para agradáveis 17 graus, o calor do jogo subia. O Peñarol marcou primeiro e o Nacional empatou de Pênalti. Houve um desentendimento por conta dessa penalidade máxima e dois jogadores foram expulsos; um de cada lado. O Artur, meu filho mais novo, que tem andado para cima e para baixo com a camisa listrada de cor preta e amarelo-ouro do Peñarol, acha que o juiz roubou. Não sei, o certo é que o empate de 1 x 1 levou a decisão para os pênaltis. Aí, o Peñarol ganhou de 7 x 6. Com essa vitória, o time aurinegro foi para a final e dias depois venceu o Palestino por 4 x 2 e sagrou-se campeão do torneio.
Saímos do estádio comentando da garra dos jogadores. Nem o elenco do Peñarol, nem o do Nacional é estrelado e talvez por isso o jogo não tenha apresentado marcas de individualismos, o que levou as equipes a privilegiarem mais o toque, sem povoar tanto o meio de campo ou ficarem fechadas em suas defesas. Foi uma partida bem jogada, com a bola correndo pelo time todo, em todo o campo. Os jogadores jogam para emocionar porque estão emocionados. Demonstram amor pela camisa, o que justifica a paixão irrenunciável das duas maiores torcidas do país.
São times que têm alma; com jogadores que não existem sobre as torcidas, mas com elas e vice-versa. O Peñarol impressiona pela aura. Não é à toa que uma das frases mais fortes do seu marketing é que “a paixão nunca perde”. Estávamos lá e sentimos o coração iluminado das bandeiras e do canto da torcida, parodiando a música “Moliendo café”, do compositor venezuelano J.M. Perroni, que décadas atrás fez muito sucesso no rádio brasileiro, com Poly e sua guitarra havaiana. O som ardente dessa música, que tanto ouvi na minha infância, reforçou a liga emotiva dos nossos abraços nas arquibancadas.
O clássico Peñarol x Nacional reúne uma série de destacados indicadores. A despeito de o Peñarol ter a maior quantidade de títulos e a maior torcida do país, os dois clubes estão entre os melhores do mundo. O Peñarol é pentacampeão da Copa Libertadores da América (1960, 1961, 1966, 1982 e 1987) e o Nacional é tri (1971, 1980 e 1988). Ambos foram três vezes, vencedores do campeonato mundial de clubes. O Peñarol em 1961, 1966 e 1982, e o Nacional em 1971, 1980 e 1988.
Não sei se dá para falar de uma escola uruguaia, no mundo do futebol, mas nos jogos da Celeste é fácil perceber a existência de um conjunto de conhecimentos e de práticas selecionadas em sua vitoriosa história. No Uruguai o futebol ainda mantém um caráter ritualístico que empolga mais pela paixão do que pela variedade do seu repertório de jogadas.
Olhando para a vibração das torcidas naquele jogo de acirrados rivais, reforcei em mim a compreensão que tenho de que ir ao estádio traz recompensas que transcendem o resultado da partida. É uma experiência catártica, social, existencial, na qual o torcedor se permite sentir, mesmo quando tudo pode parecer insosso, incolor, invisível, inodoro e inaudível.
A nossa ida ao Estádio Centenário, único estádio reconhecido formalmente pela Federação Internacional de Futebol, Fifa, como patrimônio do futebol mundial, foi divertida e a opção pela torcida do Peñarol nos deu muita alegria. Renovamos a boa impressão que temos do futebol uruguaio e passamos a dar mais preferência do que dávamos às cores da Celeste e do Peñarol nas nossas disputas no videogame de casa e nas peladas na quadra do condomínio.