Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno3, pág.3
Quinta-feira, 16 de Fevereiro de 2012 – Fortaleza, Ceará, Brasil
Diante da onda de paralisação de policiais ocorrida em vários estados brasileiros nos últimos meses fiquei a observar os fatos que evidenciam a violência atribuída ao vácuo da proteção civil por parte do Estado e os relatos que se constroem a partir da situação de risco a que a sociedade passou a ser submetida. De tudo, o que mais me chamou a atenção foi a intensidade do desassossego, ante a hipótese de perigo, manifestado de um modo geral pelas pessoas no que diz respeito à generalização do crime.
A identificação da polícia como parte dos grupos de ameaça a segurança pública perturbou o senso comum, deflagrando uma guerra psicológica que deixou a população refém do seu próprio pânico. O modo como parte dos militares grevistas conduziu o levante fez com que a narrativa da greve fosse classificada a um só tempo nos estatutos do delito comum e do crime organizado.
A fusão dessas duas dimensões, bastante apropriadas à indução ao medo, concretizou-se no receio de circulação em cidades que ficaram sem policiamento e no temor aos próprios policiais. Os casos rotineiros de violência localizada não são tão provocadores de descontrole coletivo quanto à percepção vulgarizada de ameaça. Enquanto as ruas eram evitadas, uma nova concepção de turba destilava-se pelas infovias, retroalimentando a tensão coletiva e tornando as pessoas, com rompantes de postagens compulsivas, cúmplices de um caótico estado de apreensão compartilhada.
A aposta no poder de reverência ao terror foi tão incisiva e inconsequente, que desviou o que seria o motivo principal do movimento: melhoria salarial com isonomia de policiais civis, militares e dos bombeiros em todo o País, conforme definido na Proposta de Emenda Constitucional (PEC 300/2008). O resultado foi que, atordoada com o aumento dos registros de homicídios, roubos, ataques a transportes coletivos e saques, a população ficou contra a greve; sem contar que o art. 42, paragrafo 1º, que remete ao art. 142, parágrafo 3º, inciso 4º da Constituição de 1988, não permite que façam greve os servidores que usam armas e que prestam serviços em instituições organizadas com base na hierarquia e na disciplina.
Para o psicanalista e intelectual socialista Valton Miranda, esses argumentos de desfibramento institucional acabam dispersando o foco da análise. Em seu comentário semanal, feito no dia oito passado, no programa Rádio Livre, da FM Universitária, ele pontuou categoricamente que a greve de policiais só é ilegal do ponto de vista do sistema jurídico-político que está de certo modo a serviço do capitalismo. Olhando do ponto de vista humano e das distorções desse sistema, o pensador reconhece essa greve como absolutamente correta, legítima, séria e, por isso, deve ser apoiada por toda pessoa que examine honestamente a situação.
Como tenho muito apreço pelo Valton e admiração por sua qualidade reflexiva, esforcei-me para calibrar o nosso raciocínio, mas não consegui. Não há dúvida de que os servidores de segurança pública devem ganhar salários condizentes com a importância e o risco de suas funções. Mais do que isso, não há dúvida de que para termos uma polícia mais bem preparada, é preciso que haja melhores treinamentos e equipamentos mais adequados ao trabalho do policial, acrescentando-se a isso o acesso a melhores condições de educação, saúde, cultura e lazer para si, seus filhos e familiares.
O que não consigo imaginar é como um movimento que não parece ter consistência para propor algo que possa substituir o estabelecido, deve ser encarado como agente de transformação revolucionária. O fato de ter força para promover uma desestabilização das instituições e de intensificar a insegurança social, não significa por si uma propensão política razoável. Talvez a oportunidade aberta por esse entrevero de policiais em conflito com a lei, além de colocar na pauta do País uma atenção especial aos recursos necessários para a
polícia cumprir a sua função, possa ensejar considerações sobre o que tudo isso tem a ver com as tentativas de reestruturação do crime organizado e com os interesses políticos de desestabilização dos avanços democráticos vigentes.
Em tempo decorrido, no último meio século, já temos mais anos de experiência de reconstrução democrática do que tivemos de ditadura militar. Na ditadura, passamos por um quadro de violência institucional, que não devemos esquecer, mas ao qual também não devemos ficar atados. Saímos de uma situação na qual o Estado era o agente ativo do temor e não há razão para entrarmos em outra que o Estado seja omisso diante de qualquer proliferação de medo. O Brasil não está precisando de uma primavera à moda egípcia. Não temos ditadura a derrubar nem queremos correr o risco de preparar terreno para uma junta militar assumir o governo. Definitivamente a Praça Tahrir não é aqui!
Cabe à sociedade e aos governos trabalhar para que haja a descontinuidade da malfadada construção da realidade da insegurança em curso no Brasil, criando as condições para a instalação da realidade do bem-estar de segurança e cuidando apenas de inibir os delitos próprios de qualquer vida em sociedade. O bem-estar de segurança tem sido pouco focado nas políticas públicas brasileiras. As prioridades estão quase sempre voltadas para o mal-estar de insegurança, com soluções de violência que alimenta violência, como é o caso da simples multiplicação de presídios.
O bem-estar de segurança passa pela capacidade do Estado de assegurar a proteção social, pela disposição da população em negar a midiatização indiscriminada da violência, por regulações mais transparentes no mercado de segurança privada, pelo estímulo ao convívio nos espaços públicos e pela valorização de uma cultura cidadã, que possibilite à população o discernimento entre o que é delito comum e o que é crime organizado. A aversão ao crime institucionalizado se iguala no sentimento da maioria das pessoas, naquilo que cada uma tem de mais primitivo, fazendo com que a insegurança encontre eco nos cafundós do nosso instinto de sobrevivência.
Em uma palestra sobre “Sustentabilidade Social”, que fiz na Academia de Polícia General Edgar Facó, para comandantes militares de diversos estados brasileiros, dentro do Curso Superior de Polícia (Turma de 2005), vários oficiais ressaltaram o quanto a ação e a imagem da polícia são prejudicados pela banalização da violência. Como a minha abordagem tinha por base os desafios da humanização da polícia na democracia, acrescentei que, além de passar a rejeitar a violência como mercadoria, a sociedade e os governos deveriam trabalhar na integração dos servidores públicos de segurança à vida social e cultural, de modo a desenvolver um sentimento recíproco de superação do estigma da corporação policial, como um mero aparelho de repressão popular a serviço de quem controla o Estado.
Vivemos um fenômeno típico de escalonagem do temor pela generalização do delito. É como se a probabilidade de poder ocorrer com qualquer um, fizesse com que qualquer um passasse a cuidar apenas de si como pode. Socialmente esse é o pior dos mundos, pois a migração irrefletida do enredo da violência para o campo da moral, da cultura, da religião e da política, tem características fraticidas. É bem provável que o estado de insegurança aumentado pela paralisação de policiais faça parte do nosso aprendizado democrático. Não sei. O certo é que ele se mostra grave, quase sociopatológico, e precisa ser tratado com diálogo e ações condizentes com o seu grau de vulnerabilidade.