Cidadania Orgânica
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno3, pág.3
Quinta-feira, 29 de Março de 2012 – Fortaleza, Ceará, Brasil
A crise de significados resultante das grandes transformações da vida atual tem encontrado seu contraponto em um novo tipo de prática cidadã. A nova geografia humana, de espacialidade concomitantemente física e virtual, desenvolve-se na encruzilhada dos efeitos dos hábitos insustentáveis com sua antítese, que é a percepção da necessidade de invenção de estilos de vida mais ajustados à alteridade, nos quais se inclui o respeito à preservação planetária.
Conceituei de cidadania orgânica essas reações e atitudes que têm brotado em face ao meio social, cultural e político. A cidadã, o cidadão orgânico, conforme procurei definir mais detalhadamente em palestra que fiz no 3º Encontro do Movimento Pró-Árvore, domingo passado (25/03), no Centro de Referência Ambiental do Parque Ecológico do Cocó, é alguém que não se limita às categorizações de classe, poder, escolaridade e de primazia histórica, para levar a efeito o seu sentimento, valor e senso de possibilidade diante da vida e do viver.
A formulação desse conceito passou pelo que tenho observado da disposição de muita gente, inclusive a minha, de acreditar que as transformações são momentos ideais para aprendermos a nos encontrar com o próximo e conosco mesmos. O entendimento de que não estamos sozinhos nas contradições do nosso tempo soma-se ao aproveitamento das dúvidas como oportunidades de redefinições de rumos, levando-nos a um agir integral e integrado por crenças, experiências, conhecimentos e saberes.
Cheguei também a esse conceito depois de ter proposto duas das quatro figuras que completam as metáforas caracterizadoras das grandes transformações da humanidade. Esta argumentação está no meu artigo “Metáforas da modernidade” (DN, 03/09/2009), mas recapitulo aqui para facilitar o entendimento do que quero dizer: o “Caçador” (pré-modernidade) é o predador nômade pouco interessado em reposição; o “Jardineiro” (modernidade), com sua razão iluminada é o especialista em separar ervas daninhas; o “Lenhador” (hipermodernidade), representa o hiperbólico destruidor do ecossistema; e o “Lavrador” (pós-hipermodernidade), seria ou será aquele indivíduo identificado com o equilíbrio da terra, o cultivador da relação cultura e natureza.
Nos esforços para enxergar melhor quem é a cidadã e o cidadão orgânico a desafiar o presentismo, o cientificismo, o individualismo, o imediatismo, o consumismo, enfim, a todos os “ismos” decorrentes dos exageros esterilizantes da ação do “Lenhador”, procurei identificar e publiquei no artigo “A consciência ecoplanetária” (DN, 26/05/2011) alguns dos atos virtuosos da humanidade que adubam a cidadania orgânica, tais como a cooperação, a tolerância, generosidade, identidade, moralidade, alteridade e gentileza.
Para o evento do Movimento Pró-Árvore organizei dez traços que distingo nas pessoas como próprios de quem pratica cidadania orgânica:
01 – A cidadania orgânica expressa-se nas pessoas que dialogam com o mundo, interagem com os acontecimentos globais, mas sentem-se bem com pequenas conquistas de prazer ético e estético, como a alegria de ter plantado uma árvore, publicado na internet um novo ângulo que capturou com o celular da paisagem urbana ou saber que vingou sua dica de um bom espetáculo.
02 – Fortuna para essas pessoas é um estado de contentamento, algo que se confunde com felicidade e não com aquisição de bens e haveres. Sente que ser uma pessoa de valor é mais importante do que ser rico, famoso, popular e depender de qualquer performance de sucesso acadêmico, artístico, sexual, caritativo ou profissional.
03 – Os cidadãos e as cidadãs orgânicas não querem apenas satisfazer necessidades, por isso não se subordinam à economia como o paradigma da organização social. A perturbação da ambição material cede nessas pessoas lugar ao paciente aprimoramento do ser. Elas não vão esperar pela tragédia ecoplanetária para se reumanizarem.
04 – Quem pratica cidadania orgânica não se movimenta por medo do fim, porque sabe que não existe fim… Já no século XVIII, embora motivado para provar que a química não era alquimia, o cientista francês Antoine Lavoisier (1743 – 1794) “filosofou”, ao declarar que “na natureza nada se cria, nada se perde, tudo se transforma”. Assim, a cidadania orgânica é movimentada por crença na subjetividade, que dá plenitude e diviniza a vida.
05 – No lugar de dogmas, cultiva a liberdade de ser flexível e experiencia de modo próprio e convicção íntima as sabedorias de distintos pensamentos, visões e saberes. O vigor da sua universalidade está na associação mútua que faz entre o seu futuro e o futuro do planeta e o valor da cidadania está na sua gratidão à vida, à natureza e a todos os que vieram antes e construíram o que somos.
06 – Impulsionadas pela indignação, pela esperança e por se sentirem parte do todo, essas pessoas são do lugar onde suas vidas acontecem. Não precisam se restringir a territórios, partidos, classes, categorias, gênero, etnias, enfim, defender ideologias de grupos específicos para atuar na vida social, cultural e política. Nem precisam ser intelectuais, como exigia o contexto em que o pensador italiano António Gramsci (1891 – 1937) desenvolveu a sua teoria política.
07 – Atua em um plano político onde a política vigente, marcada pela degeneração dos princípios republicanos e pela profissionalização de candidatos, normalmente não consegue mais transitar: o interesse social. Sabe que, do mesmo modo, que na monarquia, a família real é que simboliza o sentido de permanência, na república esse papel cabe à sociedade civil organizada.
08 – O cidadão orgânico e a cidadã orgânica não negam as instituições; procuram fortalecê-las, mas sabem que, como o avanço na melhoria institucional não depende só de votar, procuram combater os vícios e exaltar as virtudes sociais, com base em informações, sentimentos, pensamentos e ações… tomando partido pelo todo.
09 – Na cidadania orgânica as pessoas falam com as demais e dão ouvidos à natureza, por meio do seu jeito de ser… Vivem seu tempo e interferem na vida social, cultural e política, sem precisarem sacrificar seus laços familiares, as amizades e sem apagar seus dias de infância.
10 – A narrativa que dará suporte à ordem mundial pós-hipermodernidade vem sendo exercitada mais fortemente nas periferias. Existe uma sutil memória coletiva reprimida, que está nos contingentes mantidos fora das abordagens tradicionais do desenvolvimento, que já não tem vergonha de se expressar. Essa memória do “tempo em que os bichos falavam”, ou seja, do tempo em que cultura e natureza ainda não haviam sido segregadas pela racionalidade moderna, tem em sua essência a solidariedade, o espírito da negação ao egoísmo social e uma resiliente competência de processo.
Com o cotidiano cada vez mais exposto, o improvável cedeu espaço ao possível, ampliando o impulso crítico e fazendo com que a vivência cidadã orgânica passasse a ser uma estratégia política das pessoas que se esforçam para que a metáfora do futuro seja a do “Lavrador”. E essas pessoas muitas vezes só precisam ter um pouco mais de conhecimento do que fazer. Por isso, sugeri que o Movimento Pró-Árvore publique, em versão impressa e digital, um “Código de Defesa da Árvore”, de modo que, no que diz respeito à questão do verde, a cidadania orgânica possa ser praticada em qualquer lugar, por qualquer pessoa desperta, dotada de pensamento amoroso e rebelde, no seu jeito de participar da vida, com integridade cultural, ambiental, espiritual e política.